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Planos de saúde têm conseguido na Justiça o direito de negar o pagamento de reembolsos de consultas médicas, exames e outros procedimentos feitos por clínicas e laboratórios não credenciados que usam login e senha dos pacientes para solicitar ressarcimentos às operadoras.
De acordo com processos judiciais, os estabelecimentos fazem anúncios e prometem ao paciente o tratamento sem custo em troca de uma cessão de crédito, ou seja, é feito um contrato em que o beneficiário transfere para a clínica seus direitos pelo reembolso.
Com recibos falsos de pagamento e de posse dos dados de acesso do usuário, pedem reembolsos em nome dele. Quando o valor cai na conta do beneficiário, emitem boletos bancários ou solicitam o repasse do montante, por meio de transferência bancária.
Quando a operadora nega o reembolso, as clínicas entram, também em nome dos beneficiários, com reclamações na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) que podem gerar multas aos planos. Por fim, se não conseguem o reembolso, exigem que o paciente faça o pagamento.
A prática, considerada fraudulenta, já ocorria antes da pandemia de Covid, mas se disseminou após a crise sanitária. Além das ações judiciais, há investigações policiais em curso e uma mobilização do setor empresarial para coibi-la, já que muitos planos são ofertados pelas empresas.
No mês passado, a CCR (Companhia de Concessões Rodoviárias) demitiu cem funcionários após detectar, em investigação interna, o uso indevido do reembolso do plano. Também em abril, o Itaú demitiu 80 empregados pela mesma razão.
“Sempre tivemos fraudes, mas, antes, eram eventuais, de oportunidade. Com a era digital e a popularização do uso de aplicativos, elas se profissionalizaram. São verdadeiras quadrilhas atuando”, diz Cássio Alves, superintendente médico da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde).
Não há um levantamento sobre o volume envolvido nesses reembolsos fraudulentos. Muitos casos ainda estão sendo investigados pelas operadoras e pelo Ministério Público.
De acordo com dados da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), que representa grandes grupos de seguradoras de saúde, de 2019 a 2022 o volume total gasto pelas operadoras com reembolsos saltaram de R$ 6 bilhões para R$ 11,4 bilhões, um aumento de 90%.
No mesmo período, o aumento das despesas assistenciais com pagamento de médicos, clínicas, laboratórios, hospitais, fornecedores de materiais e medicamentos foi de 20% (de R$ 171,8 bilhões para R$ 206,5 bilhões).
Na Abramge, o volume total de reembolsos passou de R$ 6 bilhões, em 2019, para R$ 10,9 bilhões em 2022. Só a título de ilustração, se no ano passado esses reembolsos tivessem acompanhado a variação geral das despesas assistenciais, os gastos teriam sido de R$ 7,2 bilhões, segundo a entidade. “São nesses R$ 3,7 bilhões que se localizam as fraudes”, estima Alves.
Nas decisões, os juízes têm autorizado que as operadoras neguem os reembolsos que vierem desacompanhados do comprovante de pagamento das despesas pelos beneficiários e determinado que a ANS suspenda eventuais punições aos planos por esse motivo.
O reembolso assistido não está previsto na lei dos planos, portanto, a questão não é regulada pela ANS. Porém, a agência tem discutido com o setor suplementar formas de evitar que o mecanismo legítimo de denúncia do consumidor contra um plano (a NIP, Notificação de Intermediação Preliminar) seja usado pelos fraudadores.
Nos processos judiciais, laboratórios e clínicas denunciados argumentam, em sua defesa, que os consumidores realizam uma cessão de direito ao crédito em favor deles e que esse seria um serviço que agrega valor ao atendimento, trazendo comodidade, por desburocratizar o sistema de reembolso das operadoras. Os juízes, porém, têm julgado improcedentes esses recursos.
A Folha teve acesso a quatro decisões proferidas em São Paulo neste ano. Nelas, há a determinação para que as clínicas e laboratórios se abstenham de pedir login e senha para o beneficiário ou solicitar reembolso em seu nome, sob pena de multa de até R$ 50 mil por ato de descumprimento.
“[Os estabelecimentos] engendraram verdadeira arquitetura para burlar o sistema de reembolso e daquilo que está autorizado a ser reembolsado nos contratos, prejudicando consumidores e distorcendo a liberdade de escolha e livre concorrência”, diz um trecho de uma decisão de 8 de maio, da juíza Clarissa Rodrigues Alves, da 4ª Vara Cível de São Paulo.
Em outra decisão, ao deferir a tutela de urgência a uma operadora, o juiz Carlos Eduardo Borges Fantacini, da 26ª Vara Cível do Foro Central da Comarca da Capital, considerou o reembolso assistido “uma nítida propaganda abusiva e enganosa”.
Para ele, a prática fere o Código de Defesa do Consumidor e a boa-fé, “pois no sistema de reembolso por óbvio primeiro o consumidor faz o pagamento, para depois ele próprio se ressarcir junto à seguradora de saúde”.
Em 21 de março último, a juíza Andrea de Abreu, da 10ª Vara Civil do Foro Central da Capital, também justificou a decisão favorável a uma operadora argumentando que “a solicitação de dados sigilosos dos pacientes, como login e senha, coloca os consumidores em evidente desvantagem, que acabam vulnerabilizados no sigilo necessário de seus dados médicos”.
Segundo Vera Valente, diretora-executiva da Fenasaúde, além de estarem participando de uma fraude e correndo o risco de serem penalizados, beneficiários que fornecem login e senha a terceiros põem suas informações pessoais em risco. “Podem ser usadas, por exemplo, para alterar a conta bancária vinculada ao reembolso ou para solicitar reembolso de procedimentos não realizados. É um cheque em branco.”
Ela diz que há vários tipos de fraudes, como clínicas e laboratórios que, antes mesmo de o paciente passar por consulta médica, solicitam o login e a senha e já realizam uma série de exames, muitos desnecessários e superfaturados, seguidos de pedidos de reembolso.
Nos processos judiciais, são mencionados pedidos de exames de PSA (antígeno específico da próstata), usado no rastreamento do câncer de próstata, a mulheres.
Outra situação frequente, segundo Valente, é o usuário fazer um procedimento que não tem cobertura pelo plano (aplicação de botox ou cirurgia estética, por exemplo) e, em comum acordo com as clínicas, pedir reembolso com recibo de um outro tipo de serviço que é coberto. “Há muitos casos em que pessoa sabe que está errado. Vai fazer uma abdominoplastia, e o médico coloca que tem uma hérnia inguinal.”
Para Cássio Alves, da Abramge, há pacientes que claramente pactuam com as fraudes e se beneficiam delas, mas há muitos que são induzidos a elas por ingenuidade ou desconhecimento.
Em março, a Fenasaúde lançou a campanha Saúde sem Fraude para conscientizar os beneficiários sobre os danos causados pelas fraudes (que, na ponta final, encarecem as mensalidades) e mobilizar o setor no combate a elas. A campanha chegará agora às empresas.
“A gente vai distribuir um material voltado para o RH sobre como ele tem que lidar com esses benefícios e esclarecer os seus colaboradores”, diz Vera Valente.
Créditos: Folha de São Paulo.