O médico cirurgião João Batista de Couto Neto, de 46 anos, investigado em vários inquéritos por ter cometido dezenas de negligências médicas que teriam provocado mortes e mutilações em mesas de cirurgia de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, foi preso, na noite desta quinta-feira, enquanto exercia a medicina num hospital do município de Caçapava, no interior de São Paulo. No início do ano, com a suspensão vencida em outubro e, portanto, sem impeditivos, ele havia feito um novo registro no Conselho Regional de Medicina de SP (Cremesp) para atuar.
O mandado de prisão preventiva foi expedido na quarta-feira pelo juiz Guilherme Machado da Silva, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O médico foi indiciado por homicídio doloso — quando há intenção de matar — pela Delegacia de Novo Hamburgo, com base na conclusão de três inquéritos. A polícia suspeita que, ao todo, ele possa estar por trás de pelo menos 42 mortes de pacientes e outros 114 casos de lesão corporal.
Em contato com O GLOBO, o advogado de Couto Neto, Brunno de Lia Pires, criticou a prisão.
— Com surpresa a defesa recebeu a notícia da decretação da prisão preventiva do médico João Batista. A decisão não se reveste de qualquer fundamento fático ou jurídico e constitui clara antecipação de pena, com a finalidade de coagir e constranger o médico — disse, acrescentando ainda que entrará com um pedido de habeas corpus “o mais breve possível, para fazer cessar a absurda e imotivada prisão”.
João Couto Neto preso em SP por policiais civis — Foto: Divulgação / Polícia Civil
De acordo com o portal g1, os inquéritos concluídos e que culminaram neste primeiro indiciamento contra o cirurgião dizem respeito às mortes de dois homens e uma mulher. Ao site, o Cremesp explicou que, quando aceitou o registro de João Couto, sabia que o profissional havia enfrentado uma suspensão de licença, mas que “era obrigado a efetuar o registro do médico”, porque a restrição era parcial.
Redes sociais apagadas
Mas quem é o médico que pode estar por trás de mais de uma centena de casos de negligência? No ano passado, quando ainda mantinha no ar suas redes sociais, Couto Neto exibia em seu perfil, como forma de propaganda pessoal, a marca de mais de 25 mil cirurgias realizadas em 19 anos de profissão – uma média de cerca de 1,3 mil por ano. O profissional era participativo na internet, onde ostentava mais de 15 mil seguidores no Instagram, além de outros 13 mil, no Facebook.
Mensagem escrita pelo médico no dia em que foi suspenso pela Justiça do RS — Foto: Reprodução
Há 1 ano, no dia 12 de dezembro de 2022, quando foi afastado por 180 dias das mesas de cirurgia por decisão da Justiça gaúcha, o cirurgião comentou sobre a marca de “mais de 20 mil cirurgias realizadas” e exaltou o exercício da Medicina.
“Atuar como médico é sempre um grande desafio. Temos plena consciência e certeza de praticar a medicina para a melhor saúde dos pacientes”, escreveu. “E com esta responsabilidade e maturidade, nos sentimos confortáveis em afirmar que realizamos mais de vinte mil cirurgias e procedimentos durante os últimos 19 anos, cumprindo os mais elevados preceitos médicos, honrando esta profissão que é a melhor tradução de minha vida.”
Na publicação, em meio a elogios que eram feitos por pacientes que diziam estar com o profissional há anos, havia também a descrição, por parte de outras pessoas, de um homem que já tinha sua atuação questionada, inclusive por colegas de profissão. São vários os que o acusavam de erro médico.
Daniel Fernandes era um deles. Sua mãe, ele conta, teria sido uma das vítimas de negligência por parte do doutor.
– A minha mãe foi vítima dele, teve perfurações no estômago e bexiga. Já passou por nove cirurgias e ainda vai fazer outra – contou à reportagem.
‘Não conseguimos entender por que ele fazia isso com as pessoas’
As investigações são lideradas pelo delegado Tarcísio Kaltbac, da Polícia Civil em Novo Hamburgo. De acordo com ele, o médico, que só atuava na rede particular, chegava a acumular até 25 cirurgias num mesmo turno de plantão.
Uma das linhas da investigação da polícia é que esse comportamento visava a aumentar os ganhos financeiros, mas levava à negligência e aos erros médicos. Para o delegado, a quantidade de cirurgias impedia Couto Neto cuidar corretamente das intervenções e dos pós-operatórios. Mas os investigadores ainda tentam entender como falhas tão graves foram cometidas, o que leva à hipótese de crueldade deliberada.
— Não conseguimos entender por que ele fazia isso com as pessoas. Às vezes, operava uma região do corpo, mas cortava outra que não tinha a ver com a cirurgia. Houve casos de pessoas que definharam no hospital, morrendo aos poucos. Isso é recorrente nos depoimentos — afirmou Kaltbach ao GLOBO no ano passado.
Na ocasião, o delegado contou que, além dos depoimentos, longos e numerosos, há documentos, prontuários e relatórios médicos que baseiam os vários inquéritos.
— É estarrecedor o que ele fazia. Temos fotos de pessoas com a barriga aberta, apodrecendo, e ele não receitava nada, nenhum medicamento. Dizia que não era nada e que tudo ia passar. Temos relatos de tentativa de suicídio dentro do hospital, por causa de tanta dor — acrescentou Kaltbach.
‘Ainda descobri que o caso da minha mãe nem foi o pior de todos’, diz filha de suposta vítima
Em maio de 2021, Núbia Costa, de 72 anos, se consultou com o médico João Couto Neto, em Novo Hamburgo (RS), por causa de uma pedra na vesícula. Como a retirada é considerada um procedimento simples, o especialista em cirurgias do sistema digestivo marcou a intervenção para o mesmo dia, e três horas depois, ela foi feita. Ao dar alta, o médico avisou que havia ocorrido uma perfuração no intestino, mas sem gravidade, e que o corte estava suturado.
Nas semanas seguintes, parentes avisaram a Couto Neto que a idosa estava se sentindo mal. Mas ele deu pouca atenção ao problema, até ela ser internada novamente, 17 dias depois, com uma uma infecção generalizada no abdômen. Núbia morreu em julho, na cama do hospital.
Além de sofrer com a perda, Cristiana Costa, filha de Núbia, contou ao GLOBO no ano passado que ficou estarrecida com a “soberba e o descaso” com que o médico tratava a paciente e seus parentes, na segunda internação.
— Quando minha mãe teve alta, ele disse que tinha perfurado o intestino sem querer, mas que já havia feito a sutura e não teria nenhum problema. Como sou leiga no assunto, acreditei. Mas ela nunca esteve bem. Ficou sentindo dores abdominais, vomitando. Quando eu trocava mensagens com ele, as respostas eram de que estava tudo normal, ele só receitava chá e leite de magnésia. Houve várias etapas em que poderiam reverter a situação. Mas minha mãe não teve a oportunidade — lamenta Cristiana.
A filha de Núbia contou que o cirurgião era frequentemente indicado como o especialista para questões digestivas em dois dos três convênios de saúde mais fortes do município, que fica na Região Metropolitana de Porto Alegre.
— Ela ficou 60 dias no hospital até falecer. No final, já estava com uma cratera na barriga, porque de tanto abrir, não adiantava mais costurar. Era coisa de terror. Depois, ainda descobri que o caso da minha mãe nem foi o pior de todos — recorda Cristiana.
A filha da idosa contou que, no final da internação, conversou com enfermeiros e funcionários do Hospital Regina, onde Couto Neto mais costumava trabalhar, e descobriu que o caso da sua mãe não era inédito. Nos meses seguintes, em conversas pela cidade e pela internet, um grupo de vítimas e parentes se formou. Até que familiares de 15 ex-pacientes contrataram um advogado para denunciar o cirurgião à polícia. Hoje, o grupo tem parentes de 50 supostas vítimas.
— Entre os casos, há uma senhora que está em estado vegetativo há cinco anos, por causa de uma perfuração no fígado. Gente que teve perfuração de veia. Há outra ex-paciente que passou pela nona cirurgia tentando arrumar o intestino. — enumera Cristiana. — Atribuo tudo o que ele fez de errado à falta de conduta. Faz tanto tempo que isso vem ocorrendo que a gente fica se perguntando por que precisaram acontecer tantos casos para alguma coisa ser feita.
De acordo com a página de Couto Neto, ele é formado em Medicina pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e graduado em Cirurgia Geral, em 2003, pelo Hospital Nossa Senhora da Conceição, de Porto Alegre. Possui ainda diversas especializações ao longo da carreira em cirurgia do aparelho digestivo, vídeocirurgia, entre outros. Dizia ser membro da Sociedade Brasileira de Vídeocirurgia (Sobracil), do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e, também, da Sociedade Brasileira de Hérnia.
O Globo