Foram nos longínquos tempos da República Velha, há mais de cem anos, a última vez em que o Senado barrou uma indicação do presidente ao STF. A tradição tem tudo para ser mantida na República Lula 3, mas a aprovação do nome de Flávio Dino ao Supremo, na sabatina prevista para a próxima quarta, 13, vem exigindo um esforço acima da média não apenas do Palácio do Planalto e de sua base política, mas também de alguns integrantes da Corte, de forma a evitar uma surpresa, por mais improvável que seja. Tão importante quanto garantir esse aval será a escolha de quem assumirá o Ministério da Justiça, sendo que essa substituição ocorre em meio a uma grave crise de segurança no país. À frente da pasta, Dino fez muito barulho com o lançamento de planos pirotécnicos de combate à criminalidade, que tiveram a eficácia de tiros de festim — avaliação compartilhada até mesmo dentro de núcleos importantes do PT. Se não bastasse, o estilo espalhafatoso do ministro jogou no colo do Palácio do Planalto a responsabilidade sobre o problema, deixando por ora em segundo plano o papel fundamental dos governos estaduais nessa questão. “Foi um dos maiores erros políticos do Dino”, diz um aliado bastante próximo ao presidente.
Esse protagonismo resultou, de fato, em um autêntico tiro no pé. Conforme mostram algumas pesquisas, a sensação de insegurança nunca foi tão grande. Em setembro, o Datafolha constatou que, ao lado de saúde, a violência aparece em primeiro lugar entre as maiores preocupações da população. Mais recentemente, uma sondagem do instituto Atlas Intel apurou que 60,8% consideram “criminalidade e tráfico de drogas” como os maiores problemas do país, enquanto 41% consideram “péssima” a atuação federal em relação à segurança pública. O mesmo levantamento indica que a aprovação a Lula caiu de 52% para 49,6% entre agosto e novembro, enquanto a avaliação do governo como “ruim” ou “péssimo” foi de 42% para 45%. “Pela primeira vez, o item aparece como o maior desafio a ser enfrentado pelo país”, diz Andrei Roman, CEO do Atlas Intel.
A repercussão de casos emblemáticos de violência ajuda a aumentar essa sensação, como ocorreu na execução de três médicos na orla da Barra da Tijuca, no Rio. O medo de andar nas ruas é compartilhado atualmente por seis em cada dez brasileiros, segundo o Datafolha. O temor se agrava de acordo com o tipo de delito e a região do país. Notificações de estupro, por exemplo, cresceram 16,3%, em média, no primeiro semestre de 2023 em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Isso significa que a cada oito minutos uma menina ou mulher foi estuprada entre janeiro e junho no Brasil, maior índice da série iniciada em 2019. No caso de feminicídios, a alta geral foi de 2,6%, mas em São Paulo chegou a 33,7%. Já os registros de homicídios em Minas Gerais deram um salto de 25% nos dez primeiros meses do ano. A tentativa de combater o problema com endurecimento da ação policial vem se mostrando inócua em vários estados, tendo como agravante o efeito colateral da escalada da letalidade por força dos agentes. Líder desse ranking macabro, a polícia de Mato Grosso do Sul matou 66 pessoas no primeiro semestre, ante quinze no mesmo período do ano passado, uma alta de 340%. Em Santa Catarina, Roraima e no DF, os índices desse tipo de ocorrência dobraram.
Na tentativa de assumir a frente ao combate à criminalidade, o governo federal realizou disparos a esmo, anunciando, de afogadilho, medidas mirabolantes e improvisadas para dar respostas ao justo clamor da sociedade. Em outubro, logo após o Rio vivenciar episódios de violência que chocaram o país, como a queima de 35 ônibus em um só dia em protesto pela morte de um miliciano, o ministério enviou 300 agentes da Força Nacional de Segurança ao estado. Nos primeiros 45 dias, o contingente gastou 10 milhões de reais e, em 10 000 abordagens, não apreendeu armas nem drogas. Apesar das críticas ao alto custo e à baixa efetividade, a presença no Rio foi estendida até janeiro de 2024, a pedido do governador Cláudio Castro (PL).
O esforço para federalizar o combate ao crime não parou por aí. Outra medida controversa foi a inédita aplicação da Garantia da Lei e da Ordem em portos e aeroportos do Rio e São Paulo, alvo de críticas de especialistas por obrigar os militares a atuar no combate ao tráfico de drogas, algo para o qual não foram treinados. “O Ministério da Justiça acelerou o ritmo das ações operacionais neste ano. É onde estão a força e a fraqueza da atuação de Dino na pasta”, afirma o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima. “Alguns governadores perceberam que o Ministério da Justiça chamou para si a responsabilidade e jogaram a batata quente no colo do governo federal”, completa ele.
Em outras palavras, as ações promovidas tiraram do alvo principal das críticas os governos estaduais. Em novembro, Cláudio Castro recriou uma secretaria para a área após sugestão do ministro Flávio Dino, que desejava um canal direto de interlocução. Pesquisadores, no entanto, afirmam que, mais do que pastas, o que falta na relação do governo federal com os estados é uma integração constante e efetiva entre as polícias e um plano de atuação conjunto que considere os índices criminais de cada região. A percepção é que o ministério virou um balcão de serviços para os estados, fornecendo ajuda de varejo escamoteada como ação coordenada, mas que pouco resolve na prática. “O Rio tem mais de 55 000 homens, somando as polícias Militar e Civil. Está na cara que não precisa de 300 agentes da Força Nacional”, afirma o ex-secretário nacional de Segurança Pública e coronel da reserva da PM paulista José Vicente da Silva.
As ações muitas vezes desarticuladas de combate ao crime organizado encontram do outro lado quadrilhas cada vez mais armadas, especializadas e com maior abrangência territorial. Décadas de descaso do poder público resultaram no fortalecimento de máquinas que hoje dominam o tráfico internacional, transformando o país num dos importantes entrepostos de envio de drogas e armas à Europa. Além disso, impõem verdadeiro estado de sítio à população das grandes, médias e até pequenas cidades, num processo de interiorização de suas atividades. Em paralelo, observa-se o crescimento das milícias que dominam boa parte das atividades nas comunidades onde atuam, restringindo a cidadania e espalhando o terror.
Na Amazônia Legal, a histórica disputa por território na imensa área de 5 milhões de quilômetros quadrados ganhou contornos extremamente violentos desde que as principais facções do Sudeste — PCC e Comando Vermelho — romperam e passaram a rivalizar com grupos locais e internacionais pelo controle do tráfico internacional de drogas e de outras ilicitudes, como o garimpo em terras indígenas, a pesca ilegal e a exploração sexual. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao menos 22 quadrilhas atuam em 178 dos 772 municípios dentro e fora da floresta. É ali que a quantidade de mortes violentas intencionais, como homicídios dolosos e latrocínios, cresceu em 2022. O índice por 100 000 habitantes chegou a 33,8, quando a média nacional ficou em 23,3. Ou seja, 45% a mais. O mesmo estudo mostra que o número de assassinatos avançou 7,3% nas cidades rurais no ano passado. Já nos municípios considerados urbanos também houve alta, mas menor, de 0,8%.
Boa parte das estatísticas já vinha piorando há mais tempo e, durante a transição do governo Bolsonaro para o de Lula, a equipe responsável pelo plano de segurança se impôs a tarefa de tentar quebrar o estigma de que partidos como o PT, ao chegar ao poder, mostram-se lenientes com bandidos, em nome das políticas de direitos humanos. Agora, diante do complicado cenário atual, é inevitável que a dificuldade enfrentada historicamente pelos governos de esquerda nesse campo seja explorada pelos adversários na eleição de 2024. Para alas importantes do PT, a passagem de Dino pelo Ministério da Justiça forneceu munição aos opositores. “Não deixou nenhum legado”, critica um dos aliados do governo.
Evidentemente, a provável ida dele para o STF já movimenta a disputa pelo comando da pasta. As articulações são acompanhadas do debate sobre a possibilidade ou não de desmembramento da pasta em duas, separando as ações de Justiça e de Segurança Pública. A preocupação do governo é encontrar um nome de peso político e operacional principalmente nas ações ligadas à segurança. Nesse ambiente, despontam nomes como o do ex-ministro Ricardo Lewandowski, mas só em caso de cisão da pasta — embora tenha sólida experiência no Judiciário, o que seria útil nas articulações com órgãos superiores, ele tem pouca articulação com as polícias. Também são citados o advogado-geral da União, Jorge Messias — que foi cotado para o STF —, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas, e o atual secretário-executivo da pasta, Ricardo Capelli.
Os nomes aparecem acompanhados de argumentos que vão desde necessidade de apoio político até o aumento da representação feminina ou de partidos apoiadores do governo. Mas o importante é que seja um nome qualificado para fazer frente a um dos principais problemas enfrentados pela sociedade. Embora não seja de uma ação sob a responsabilidade do governo federal, não é possível aceitar episódios como o vivido pelo empresário Marcelo Benchimol, de 67 anos. Ele caminhava pela calçada de Copacabana, no Rio, quando viu uma senhora sendo assaltada. Ao tentar protegê-la, foi roubado e agredido por dois homens até desmaiar. “Eu fico chateado porque não sei se isso tem final. Se prenderem esse grupo, outro vem e assim por diante”, desabafou o empresário, resumindo um pouco o desalento que toma conta do brasileiro.
Para elaborar formas mais eficazes de combate à criminalidade, olhar à sua volta pode ser um bom começo para o governo petista, assim como para as administrações estaduais. Um dos exemplos mais notórios de políticas bem-sucedidas vem de Medellín, na Colômbia. Em 1991, a ex-sede de operações de Pablo Escobar foi classificada como a cidade mais violenta do planeta, contabilizando 380 homicídios por 100 000 habitantes. Por meio do desmantelamento do narcotráfico, projetos de urbanismo e investimentos públicos continuados em educação e cultura, a taxa despencou para catorze por 100 000 habitantes em 2020. A integração entre ações federais e municipais foi fundamental — enquanto a prefeitura elaborava e executava ambiciosos programas sociais nas áreas mais vulneráveis, o presidente Álvaro Uribe conduziu amplas negociações com traficantes pelo desarmamento e queda dos assassinatos em troca de redução de penas.
Outro caso de relevância global foi a política da “Tolerância Zero” em Nova York, promovida pelo prefeito Rudy Giuliani entre 1994 e 2001. Baseado na ampliação do policiamento, fortalecimento da autoridade policial e endurecimento das penas, o modelo entregou uma drástica diminuição de 61% dos homicídios e 44% da criminalidade em uma cidade assolada pela violência nos 1970 e 80. “É possível se inspirar em políticas de segurança pública de outros países, mas não se pode importar um modelo generalizado. É preciso realizar estudos regionais e locais, com foco nas zonas mais vulneráveis, para implementar projetos mais eficientes”, avalia Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Mas algo precisa ser feito. O presidente e outras autoridades precisam definitivamente parar de tratar de forma errática e demagógica um tema tão sensível e complexo. Afinal de contas, os brasileiros merecem ter paz — e segurança.
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