A Comissão de Juristas, convocada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), enfrentou uma semana de trabalho intensa e repleta de debates acalorados, especialmente sobre questões morais. Na última quinta-feira (4), os membros discutiram trechos do texto relacionados ao direito à vida, direito a amantes, poligamia e até mesmo à multiparentalidade no Código Civil – ou seja, a possibilidade de uma criança ter mais de um vínculo materno ou paterno em sua certidão de nascimento. A presidência do Senado Federal, responsável por instituir a comissão, deve receber oficialmente o texto do anteprojeto nos próximos dias.
Um dos artigos do relatório final gerou polêmica ao considerar o embrião como “potencialidade de vida”. O parágrafo inicial do artigo 1511-A, em sua primeira versão, afirmava que “a potencialidade de vida humana pré-uterina ou uterina é expressão de dignidade humana e de paternidade e maternidade responsáveis”.
Após uma ampla discussão, os membros aprovaram a nova versão apresentada pela também relatora, Rosa Maria Nery, que estabelece que “a potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida pré-uterina e uterina são expressão da dignidade humana e de paternidade responsável”.
Outro ponto que, na visão de alguns juristas, poderia abrir espaço para o avanço do aborto no Brasil, refere-se ao acréscimo da expressão “para fins deste código” no artigo 2º, que trata da personalidade jurídica.
A proposta inicial dos juristas era alterar o texto do dispositivo para: “a personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida e termina com a morte encefálica; a lei põe a salvo, desde a concepção, para os fins deste Código, os direitos do nascituro”. No entanto, após discussão na sessão da sexta-feira (5), a comissão optou por manter o artigo 2º conforme está no Código Civil vigente: “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Alterada durante a reunião, versão anterior do texto beneficiava amantes segundo próprios membros da comissão
Outro ponto amplamente debatido e que sofreu alterações foi o artigo 1.564-D, que abria a possibilidade de reconhecimento de direitos a amantes, conforme também reportado pelo site Gazeta do Povo. A análise da doutora em Direito Civil pela USP e presidente da Associação de Direito de Família e de Sucessões (ADFAS), Regina Beatriz Tavares, considerou adequada a versão aprovada durante a reunião.
Segundo Tavares, a alteração realizada na redação anterior do artigo 1.564-D esclarece que relações paralelas a um casamento ou união estável não constituem família. Além disso, se houver enriquecimento sem causa, haverá restituição do que tiver sido indevidamente auferido pelo cônjuge ou convivente. Essa abordagem coloca a relação de adultério no lugar apropriado: não é uma relação familiar.
Durante a discussão, Maurício Bunazar destacou o perigo da primeira versão, que considerava o concubinato como uma união semelhante à união estável e ao casamento. Ele argumentou que isso criava um tertium genus, ou seja, um “terceiro elemento” ao lado do casamento e da união estável.
A possibilidade de conceder direitos aos amantes gerou controvérsia. Marco Aurélio Bezerra de Melo comentou que essa questão deveria ser resolvida na possessória, na ação de extinção de condômino, e não no âmbito do direito de família. Ele alertou que não se deveria legitimar uma relação familiar com o concubinato, dando mais direitos à amante ou amante do que àquele que casou.
Melo também lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF) já julgou sobre o direito a amantes. Em 2021, a Corte definiu duas teses de repercussão geral (529 e 526) que não reconhecem direitos às uniões paralelas durante o período de casamento ou união estável.
Na tarde da última sexta-feira (5), Giselda Maria Hironaka, Claudia Lima Marques e Maria Cristina Santiago pediram desculpas às mulheres submetidas a relações paralelas pela falta de reconhecimento da Comissão de Juristas. Embora Santiago tenha solicitado a reabertura da votação do artigo sobre o tema, o presidente da comissão, Luís Felipe Salomão, negou o pedido.
Poligamia e multiparentalidade também foram discutidas, mas não houve avanço
Apesar de terem sido rejeitados, alguns juristas defenderam a inclusão de pontos polêmicos no texto do anteprojeto, como poligamia e multiparentalidade.
A professora Berenice levantou uma questão que abrange vários artigos e está relacionada aos deveres do casamento. Ela argumentou que fidelidade e coabitação não deveriam ser deveres decorrentes do casamento. Segundo a relatora Rosa Nery, se essa proposta fosse votada, resolveria seis ou sete pontos dentro do código.
José Fernando Simão contrapôs, destacando que, se o dever de fidelidade fosse eliminado, a presunção pater is est também deveria ser derrubada. Essa presunção atribui ao marido a paternidade dos filhos do casal. A proposta de Maria Berenice Dias também vai contra a tese 529 do STF, que consagrou o “dever de fidelidade e monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”. Apesar do apoio de outros cinco membros, a proposta de Dias não foi aprovada.
Maria Berenice Dias também sugeriu o reconhecimento da multiparentalidade no novo Código Civil. Isso significa permitir que constem mais de um vínculo materno ou paterno na certidão de nascimento. Ela defendeu essa possibilidade, afirmando que a Justiça já reconhece essa prática há muito tempo. A primeira decisão nesse sentido, que possibilitou esse tipo de registro, ocorreu em 2015, e foi patrocinada por ela.
Embora alguns tribunais já tenham reconhecido a dupla paternidade ou maternidade, ainda não existe legislação que permita isso diretamente. A relatora Rosa Nery ponderou que a multiparentalidade é uma novidade que precisa ser considerada. A emenda de Maria Berenice Dias recebeu apoio de 10 membros, mas foi rejeitada pela comissão.