A queixa de que a maioria dos jornalistas é de esquerda (militando em causas progressistas) e as coberturas não são tão imparciais quanto alegam os veículos pode ir além de mera implicância ou intuição dos leitores de notícias. Em sua edição mais recente, uma das maiores pesquisas feitas com jornalistas brasileiros mostra que a maioria esmagadora (81%) dos que responderam sobre convicções políticas se declararam de esquerda (52,8%) ou centro-esquerda (29%). Por outro lado, apenas 4% dos jornalistas disseram ter posicionamento mais à direita (sendo 1,4% de direita e 2,5% de centro-direita). Até mesmo os que se identificam como extrema-esquerda (2%) superam os que os que se dizem de direita. Apenas 0,1% classificam-se como de extrema-direita.
Dados mais antigos já davam indicações parecidas. Em 2017, ao rebater um ataque do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad à imprensa, o então editor-executivo, hoje diretor de redação da Folha de S. Paulo, Sérgio Dávila, admitiu que “as Redações são formadas em sua maioria por uma elite intelectual de jovens progressistas de esquerda” e que “o resultado era palpável nas páginas do jornal, por mais que os profissionais se empenhassem em fazer valer o princípio de apartidarismo que é pilar do Projeto Editorial da Folha”.
Segundo escreveu Dávila, a redação da Folha tinha, na época, 78% de jornalistas identificados como centro-esquerda. “Em 2014, no segundo ano de governo Haddad, censo interno realizado pelo Datafolha atestou que 55% dos jornalistas da casa se consideravam de esquerda, e 23%, de centro. Indagados sobre como situavam o próprio jornal, 50% o colocavam no centro, e 30%, na esquerda. A maioria adotava posição liberal em relação a aborto, direitos homossexuais e drogas, em números eloquentemente superiores aos da população brasileira como um todo: 82% a favor da descriminalização da maconha e 96% a favor da união civil entre homossexuais, ante 77% e 39% dos brasileiros, respectivamente”, pormenorizou.
Definindo Haddad como possivelmente “o prefeito mais paparicado por jornalistas em toda a história de São Paulo”, o editor-executivo acrescentou que “por causa dessas características [dos jornalistas], encontrou terreno fértil nas Redações a agenda ‘São Paulo, Nova Amsterdã’”, do petista, que trazia propostas como o “biciclicentrismo das ciclofaixas e ciclovias” e o pagamento de salários a usuários de crack.
Na mesma época, em dezembro de 2017, um levantamento realizado pelo Instituto Paraná Pesquisas a pedido da Gazeta do Povo mostrou que não existia um posicionamento político dominante no Brasil. Segundo a pesquisa, houve um empate técnico na escolha do brasileiro pela direita, esquerda, centro e por uma postura independente. Todas as posições tinham, então, pouco mais de 20% das preferências, e se igualavam dentro da margem de erro de 2%. Ou seja, o ambiente posicionado mais à esquerda das redações, evidenciado por Dávila, não refletia uma tendência geral entre a população. E as pautas trabalhadas, portanto, poderiam estar descoladas dos anseios dos cidadãos.
“Os jornalistas de direita, em sua maioria, procuram fazer análises, sem confundir com opinião. Já os de esquerda são militantes, fora algumas exceções, como Fernando Gabeira, que consegue fazer uma análise independente da posição dele, ou William Waack, por exemplo. Mas a maior parte dessa geração com menos de 50 anos tem uma visão viciada e confunde análise com posições pessoais. Isso empobrece a maior parte do jornalismo”, analisa a professora de filosofia Bruna Torlay, diretora de conteúdo da Revista Esmeril.
Torlay estende a crítica aos veículos nacionais que, na opinião dela, perdem ao não abrir espaço para jornalistas com visões divergentes. “São poucos os jornais que contam com jornalistas do espectro associado à direita, cuja característica é não difundir narrativas forçadas sobre a esquerda. Esses veículos também costumam ser plurais e abrir espaço para pessoas de centro-esquerda, o que não acontece nos outros, que só contratam profissionais de centro-esquerda”, afirma.
A ciência pode explicar esse comportamento. Um estudo conduzido pelos psicólogos sociais Jesse Graham (Universidade do Sul da Califórnia), Brian Nosek (Universidade da Virgínia) e Jonathan Haidt mostrou que os conservadores entendem melhor a esquerda do que o contrário. Os pesquisadores pediram a mais de duas mil pessoas que respondessem a um questionário, com três tipos de opiniões políticas: as suas próprias, fingindo serem progressistas/esquerdistas típicos, e fingindo serem conservadores/direitistas típicos. Como resultado, os moderados e conservadores foram mais precisos em representar o papel dos outros grupos. E quanto mais progressistas eram os respondentes, mais imprecisas foram suas previsões sobre como pensam os demais grupos.
Matriz marxista na formação
Outra explicação possível para o fenômeno do esquerdismo nas redações advém da própria formação acadêmica. Nos Estados Unidos, por exemplo, as universidades pendem para a esquerda. Em 2017, a Young America’s Foundation afirmava que, para cada orador conservador, havia 11 do outro lado do espectro político. Em algumas instituições de maior prestígio, como a Princeton, a proporção era de 30 docentes democratas para cada republicano. Já aqui no Brasil, um estudo realizado com professores de História de países do Mercosul, em 2018, revelou que 84,5% dos docentes brasileiros disseram preferir siglas de esquerda ou centro-esquerda.
“Educação é formação num ambiente de liberdade, de abertura, num ambiente de diálogo, de debate. A universidade e o ensino básico estiveram, e eu acho que ainda estão, muito dominadas por uma matriz marxista. Nós estamos há décadas e décadas com essa matriz. E eu diria não só essa matriz, mas uma matriz militante, ativamente militante, samba de uma nota só. Isso tem consequências. Quando a ideologia domina o processo de conhecimento, o que desaparece é o conhecimento”, opina Carlos Alberto Di Franco, que é doutor em Comunicação, especialista em Jornalismo Brasileiro e Comparado e consultor de empresas informativas.
“No Brasil, não é o esquerdismo que predomina, é a mediocridade. O comodismo é maior entre os brasileiros do que a identificação com uma ideologia”, completa Bruna Torlay. “O progressista é a pessoa que não contestou a própria formação recebida na universidade, não procurou outras fontes além da bibliografia distribuída pelos professores, e a maioria dos cursos é de esquerda. As pessoas que têm curiosidade correm o risco de rever suas posições, porque não são acomodadas, vão além e procuram outras teorias, autores e visões de mundo. No Brasil, a desvalorização da alta cultura faz a mediocridade predominar. As pessoas não vão além do obrigatório, e o obrigatório é esquerdista. É pela mediocridade que a coisa se mantém”, defende.
Filiados a partidos superam recorte populacional
O relatório Perfil do Jornalista Brasileiro 2021 obteve 6.650 respostas de jornalistas, por meio de enquete em rede, entre 16 de agosto e 1º de outubro do ano passado. A maioria dos respondentes trabalha no Brasil, sendo que 56 ouvidos atuam no exterior. As perguntas sobre posicionamento ideológico foram respondidas por 1.978 profissionais. Entre eles, 8,3% não quiseram informar suas convicções. A posição ao centro correspondeu a 4,7% dos ouvidos.
Em uma pergunta aberta sobre posicionamento ideológico, pouco mais de 2% dos entrevistados responderam, com destaque para definições como “esquerda ambientalista” e “esquerda radical”. Também houve 13 respostas defendendo a neutralidade, a imparcialidade ou afirmando que não se sentem representados. Pouco mais de 10% se declarou filiado a algum partido político, com uma tendência à participação em partidos de esquerda (o PT aparece no topo, com 4,1% dos ouvidos, seguido por PSOL, com 1,8%, e PCdoB, com 0,8%). De acordo com a pesquisa, o Tribunal Superior Eleitoral apontava 16 milhões de pessoas filiadas a partidos políticos em 2021, o que correspondia a 7,4% dos brasileiros. Ou seja, o índice de filiação entre os jornalistas (10,3%) supera o da população em geral.
Perguntas sobre ética no exercício da profissão foram respondidas por 1.462 jornalistas. Para 86% deles credibilidade é extremamente importante, e 12,8% consideram muito importante; 71% disseram que diversidade é extremamente importante e 24,8%, muito importante. Equilíbrio é tido como um valor de importância para 94,6% dos profissionais. Já a imparcialidade é vista como extremamente importante por 46% deles e muito importante por 27%. Quase 65% apontaram a pressão de anunciantes, patrões, governos ou outros como fator que impede o exercício ético do jornalismo.
O estudo foi liderado pelo Laboratório de Sociologia do Trabalho da Universidade de Santa Catarina (Lastro/UFSC) e articulado nacionalmente pela Rede de Estudos sobre Trabalho e Profissão (RETIJ), da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).
EUA seguem mesma tendência
Realizada a cada dez anos, a última edição da pesquisa The American Journalist [O Jornalista Americano], publicada em 2013, mostrava que metade dos jornalistas dos EUA (50,2%) se diziam independentes, 28,1% afirmavam ser democratas (perto do índice geral da população, que é de 30%) e 7,1% republicanos (número bem menor que os 24% de adultos que se identificam com o Partido Republicano no país).
“É certamente verdade, pelo menos nos Estados Unidos, que a maioria dos meios de comunicação mainstream é composta e liderada por pessoas que estão predominantemente à esquerda do centro. Muitas razões foram sugeridas para isso, mas não acho que haja uma explicação simples ou direta”, pontua Stephanie Slade, editora-sênior da revista conservadora americana Reason, em entrevista à Gazeta do Povo. “Também é verdade que há mais canais de centro-direita do que nunca, e também mais canais não ideológicos ou específicos de áreas temáticas. Os seres humanos nunca puderam escolher entre um conjunto tão diversificado de fontes de informação, para melhor e para pior”, completa.
Para a jornalista, embora todos tenham suas inclinações, alguns profissionais e veículos se esforçam mais pela imparcialidade na escolha das pautas, fontes e ênfases. Ou seja, é possível fazer jornalismo ético e de alta qualidade sem ser “neutro”.
“Na revista Reason, onde trabalho, acreditamos que a liberdade é melhor que a escravidão, o governo constitucionalmente limitado é melhor que o autoritarismo e os mercados são melhores que a economia planificada. Nossas reportagens refletem esses princípios e estamos abertos a isso. No entanto, como todos os bons jornalistas, estamos comprometidos com a honestidade, a verdade e a justiça em nossas reportagens. Só porque você tem uma ‘perspectiva’ não lhe dá licença para ignorar os fatos ou distorcer a realidade ao seu gosto. Na verdade, se os fatos estão causando problemas para você, provavelmente é um sinal de que você precisa revisar sua perspectiva”, alerta Slade.
Viés exagerado?
Durante uma viagem em 2020, o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump disse que a mídia o tratou pior do que qualquer presidente anterior. Segundo um grupo de cientistas norte-americanos que trabalhou em um levantamento entre 2017 e 2018 para investigar se as preferências políticas dos profissionais de imprensa têm influência em dois tipos de viés (nos assuntos que escolhem cobrir e no tom da cobertura), a alegação de Trump não tem fundamento.
À solicitação “descrevam (sua) própria ideologia (política) pessoal” em uma escala de cinco pontos, variando de muito liberal [nos EUA, liberal equivale à esquerda; no Brasil, o conceito é similar ao europeu, mais associado à direita e à conotação de Estado mínimo] a muito conservador, a maioria dos jornalistas respondeu se declarando independente ou moderada. Para superar esse “obstáculo”, os pesquisadores optaram, então, por identificar a ideologia de cada indivíduo com base em quem ele segue no Twitter (o que, segundo eles, teve resultados muito próximos da realidade para aqueles jornalistas que responderam se posicionando politicamente). A investigação envolveu quase 7 mil repórteres que cobrem política. “Descobrimos que a maioria dos jornalistas é muito liberal. O jornalista médio está à esquerda de políticos liberais proeminentes como o ex-presidente Barack Obama”, reconhecem.
Os pesquisadores enviaram a todos os jornalistas sugestões aleatórias de pautas sobre um suposto candidato liberal ou conservador. A conclusão foi que os profissionais não se mostraram mais tendenciosos a cobrir um candidato de sua própria ideologia, o que derrubaria a hipótese do primeiro tipo de viés. A pesquisa também identificou o posicionamento de quase 700 jornais locais e nacionais e analisou todas as notícias disponíveis sobre os 100 primeiros dias de Trump no cargo. O levantamento contou com um software que estima o tom emocional na linguagem escrita de 0 a 100 (sendo que 50 é considerado tom neutro).
“Embora haja uma relação entre a ideologia de um jornal e o tom da cobertura, o efeito é pequeno. Consideramos o tom médio de três jornais, um na extrema-direita de nossa escala, um no centro e um na extrema-esquerda. Para todos os três, o tom é próximo de 50. Os jornais conservadores não são líderes de torcida abertos de Trump, e os veículos liberais não são excessivamente negativos. (…) A maior parte da cobertura jornalística é moderada e apresenta poucos vieses facilmente identificáveis”, defendem os pesquisadores.
Apesar das conclusões do estudo norte-americano, na prática as evidências mostram uma tendência a “distorção” na cobertura, de acordo com as preferências políticas dos profissionais. Voltando ao artigo escrito por Sérgio Dávila, um levantamento feito pelo Banco de Dados da Folha de S. Paulo, em agosto de 2017, comparou as coberturas dos seis primeiros meses da gestão de Fernando Haddad com o mesmo período da administração João Doria.
O petista teve 619 menções no jornal, 443 delas com efeito neutro (72%), 83 com efeito positivo (13%) e 93 com efeito negativo (15%). Já o tucano foi mencionado 1.027 vezes, 683 delas foram neutras (67%), 54 positivas (5%) e 290 negativas (28%). “À parte a dominância bem-vinda dos índices de neutralidade em um caso e outro (72% para Haddad e 67% para Doria), impressiona como os percentuais de menções negativas e positivas se invertem: a proporção de textos de leitura negativa em relação ao tucano (28%) é quase o dobro da do petista (15%), enquanto a proporção de textos de leitura positiva em relação ao petista (13%) é quase o triplo da do tucano (5%)”, analisou Dávila.