O governo federal deverá elaborar um plano para melhorar as condições das prisões brasileiras, reconhecidas há oito anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como ambientes que violam de forma grave, sistemática e massiva os direitos dos presos.
O documento será feito pelo Ministério da Justiça com acompanhamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O prazo para entrega é de seis meses, contados desde outubro deste ano.
A ordem para a execução desse plano partiu do próprio Supremo, em decisão do começo do mês passado que confirmou a existência de um “estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário brasileiro.
Especialistas ouvidos pela CNN afirmaram que o diálogo do governo com estados deverá ter papel importante na montagem desse documento, principalmente para equacionar e contemplar as diferentes realidades locais – a absoluta maioria dos mais de 830 mil presos está nos sistemas estaduais.
Conforme as análises, o plano também precisará ser realista e possível de ser efetivado, com especial atenção à garantia de demandas básicas e ainda negligenciadas, como abastecimento de água e alimentação adequadas, e ao enfrentamento à superlotação dos presídios.
Uma consequência apontada pelos especialistas é uma espécie de desafio político colocado ao CNJ, que terá que articular soluções que necessariamente passam por dois poderes: o Judiciário (que manda prender) e o Executivo (que mantém as prisões).
Conforme decidido de forma unânime pelo STF em outubro, o plano de melhorias deverá tratar de três pontos principais:
- vagas insuficientes e de má qualidade no sistema prisional;
- alto índice de encarceramento;
- cumprimento de pena por tempo maior que o da condenação.
O plano terá que ser homologado pelo STF e, uma vez aprovado, ser implementado em três anos. Estados e o Distrito Federal também deverão elaborar planos próprios, seguindo o documento produzido na esfera federal.
“Melhorias estruturais”
Responsável no Ministério da Justiça para tocar a elaboração do plano, a Secretaria Nacional de Políticas Penais tem à sua frente o policial penal Rafael Velasco, ex-subsecretário de administração penitenciária do Maranhão.
À CNN, ele disse que, nesta fase inicial, a busca é por reunir dados para embasar o planejamento. Em 19 de outubro, por exemplo, o ministro da Justiça, Flávio Dino, foi ao encontro do presidente do STF, Roberto Barroso, para entregar informações atualizadas sobre a aplicação orçamentária da área.
Conforme Velasco, o ministério coordena esforços com outras pastas e órgãos do governo para elaboração do plano, além das secretarias estaduais de administração penitenciária.
Segundo ele, as principais diretrizes a serem adotadas no documento envolvem “melhorias estruturais”. Dois pontos são a implementação de audiências de custódia de forma “célere” e a destinação adequada de recursos do Fundo Penitenciário Nacional para melhorar as condições das prisões.
Esses dois elementos já foram objeto de determinação do STF, ainda em 2015, quando a Corte reconheceu pela primeira vez o “estado de coisa inconstitucional” no sistema prisional.
“Essas medidas refletem nosso compromisso em buscar soluções concretas e abrangentes, que não apenas atendam às diretrizes do STF, mas também ofereçam melhorias substanciais e duradouras para o sistema penitenciário em todo o país”, afirmou Velasco.
O secretário disse que houve uma reunião com secretários estaduais da área penitenciária para debater a determinação do STF. “Durante esse encontro, convidamos todos os envolvidos a participar de grupos de trabalho, visando abordar colaborativamente os desafios necessários para superar o estado de coisas inconstitucional”.
“Compreendemos que a atuação conjunta é crucial, uma vez que o plano da União é apenas uma parte da equação. Cada estado deverá desenvolver um plano que não apenas se alinhe ao plano federal, mas também contribua de forma complementar para a superação dessa situação desafiadora”, afirmou.
Política do encarceramento
A colaboração e diálogo do governo federal com estados é apontada por especialistas como parte fundamental da equação.
Os presídios estaduais são responsáveis por custodiar 644,4 mil pessoas, enquanto só 489 estão presas no sistema federal. Os dados são do Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (SisDepen), de junho de 2023.
Ao todo, o Brasil tem uma população carcerária de 839,6 mil pessoas –a terceira maior do mundo, atrás de Estados Unidos e China. O número envolve presos em celas, em prisão domiciliar ou nas carceragens de polícias. 180 mil pessoas são presas provisórias, aquelas que não têm contra si uma condenação da Justiça.
Para advogada criminalista Ludmila Leite, sócia do Florêncio Filho e Camargo Aranha advogados, medidas práticas e exequíveis já podem ser tomadas para barrar a alta taxa de encarceramento no país, controlando o fluxo desnecessário de entrada e a saída demorada de pessoas dos presídios.
De um lado, há pessoas que ficam presas além do tempo fixado na condenação. Para se ter uma ideia do tamanho do problema, o mutirão carcerário do CNJ em parceria com tribunais resultou na movimentação de mais de 100 mil processos e na liberdade de quase 22 mil pessoas que estavam presas indevidamente, em trinta dias de funcionamento.
De outro lado, há uma política do encarceramento. A advogada Ludmila Leite cita a existência de critérios diferentes para se prender ou manter preso no país, frutos da independência dos magistrados que acaba reforçando um viés mais punitivista e colaborando para manter em nível alto a quantidade da população carcerária.
“O juiz é independente, e alguns se recusam a aplicar teses que já são consagradas”, afirmou. “Tem juízes que entendem que tráfico é [crime para] regime fechado, independentemente das condições, e decisões sobre furtos e roubos. É o que traz impactos ao sistema prisional”.
A situação levou o STF a aprovar, em outubro, uma súmula de cumprimento obrigatório pela Justiça definindo condições mais favoráveis para que réus primários por tráfico que não tenham ligação com o crime não cumpram pena em prisões. Esse entendimento já vinha sendo adotado pelo Supremo, mas tribunais pelo país não seguiam.
Desafio político
Para Leite, o CNJ terá pela frente o “desafio” de organizar o plano elaborado pelos governos, respeitando peculiaridades regionais, e fazer um arranjo junto ao Judiciário.
“O CNJ vai ter que ser politicamente hábil, para criar essa costura, porque são dois poderes diferentes”, afirmou. “Só vai funcionar se tiver alguém muito hábil, e vejo o CNJ como líder nisso, para fazer essa costura, tentando olhar os estados na parte do sistema penitenciário, que é responsabilidade dos Executivos, ao mesmo tempo em que a questão sobre a entrada e saída [de pessoas das prisões] é mais ligada ao Judiciário”.
O advogado e professor de Direito Constitucional Henderson Fürst defende que o plano que venha a ser aprovado seja viável e que, dependendo do que for proposto, será preciso investimento.
“É melhor que seja algo factível do que algo que não seja possível realizar. E não sendo, que se consiga dotação orçamentária”, afirmou. “Não dá para o STF dar uma decisão que fuja da realidade. Não dá para ficar como está, mas achar que uma decisão vai transformar completamente uma realidade é ser utópico e correr o risco de nada ser feito”.
Para ele, a resolução do grave quadro das prisões passa por reduzir a população carcerária, a partir de uma revisão sobre os critérios de aprisionamento. “Precisamos de respostas contemporâneas a problemas contemporâneos”, afirmou.
“O encarceramento é uma técnica de solução de conflito social que existe desde a Idade Média, de forma institucionalizada como conhecemos. Uma solução assim é a melhor solução para problemas do século 21?”
Além de sugerir a adoção de penas mais adequadas e proporcionais, ele também cita o caráter estrutural a criminalidade, que é influenciada pela pobreza e níveis de desemprego. “Os países com menor índice de criminalidade no mundo são os que as pessoas tiveram opções melhores e mais naturais à sai subsistência”.
O advogado Mozar Carvalho, sócio fundador do escritório Machado de Carvalho Advocacia, afirmou que a situação do sistema prisional brasileiro é um “espelho” da complexidade e dos desafios políticos que o país enfrenta.
“Reformar o sistema implica não só em investir em infraestrutura e pessoa, mas em repensar toda a política do encarceramento”, disse.
Histórico
A situação do “estado de coisas inconstitucional” dos presídios do país foi formalmente reconhecida pelo Supremo em 2015, em ação movida pelo PSOL.
Com esse reconhecimento, o Supremo entende haver massiva e sistemática violação dos direitos fundamentais dos presos nas penitenciárias brasileiras, em virtude de problemas estruturais na área e da incapacidade de autoridades públicas solucionarem as péssimas condições das unidades prisionais.
O instrumento possibilita que o Judiciário possa intervir determinando medidas concretas para superar violações.
Quando a Corte analisou pela primeira vez o caso, em 2015, foi determinada a obrigatoriedade na realização das audiências de custódia em prisões em flagrante (quando o preso é apresentado a um juiz em até 24h para verificar a legalidade da detenção), e a liberação de recursos acumulados no Fundo Penitenciário (Funpen), com o dinheiro devendo ser aplicado em melhorias no setor, e proibindo novos contingenciamentos.
Créditos: CNN.