Ataque do Hamas a Israel reacendeu a ofensiva americana contra a presença de seus competidores estratégicos na América Latina; EUA alertam para os riscos do terrorismo e do crime organizado
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A general Laura Richardson é conhecida pela franqueza com que expõe o pensamento e as preocupações do Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos. Em mais uma entrevista, desta vez, para a Fundação para a Defesa da Democracia, um instituto criado após o 11 de setembro de 2001, ela aproximou as ameaças dos competidores estratégicos dos EUA – China, Rússia e Irã – à representada pelo Hezbollah à segurança do Ocidente. O evento aconteceu no dia 11, em meio à semana em que Israel foi atacado pelos terroristas do Hamas. Richardson mencionou duas vezes o Brasilao tratar das “intenções malignas” dos adversários.
“As atividades do Hezbollah (na América Latina) obviamente são uma preocupação”, afirmou a general. Hezbollah na América do Sul é quase sempre sinônimo da Tríplice Fronteira, entre Argentina, Paraguai e Brasil. A citação ao grupo libanês aconteceu logo após ela listar movimentos da China e da Rússia na região, como a viagem de Serguei Lavrov, ministro das relações exteriores da Rússia, por Nicarágua, Venezuela e Cuba, em abril. “Mas, depois (Lavrov), também (foi) pelo Brasil para reuniões; e o presidente iraniano veio ao hemisfério, em junho”, lembrou Richardson.
Em seguida, mencionou as passagens de navios de guerra do Irã e da Rússia na América do Sul para assinalar as “intenções malignas” dos competidores dos EUA na região. “Navios de guerra iranianos, que estão fazendo um giro global, vieram para o hemisfério a partir do Pacífico e tentaram fazer escalas em inúmeras cidades, que foram negadas. E a fragata acabou recebida no Rio.”
A general, por fim, advertiu: “Estamos vendo uma tendência de aumento de ações na região também por parte de nossos concorrentes estratégicos e, novamente, é muito preocupante, porque acho que a região está insegura e instável e nós podemos fazer melhor neste momento vulnerável para nós mantermos fora concorrentes estratégicos, que têm intenções malignas”. As falas da general seriam apenas mais uma forma de atrair atenção – e recursos – para seu comando? É possível.
Ou seria uma reedição do eixo do mal? Analistas, como o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, lembram que essas ameaças já estavam presentes na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, publicada em outubro de 2022. Mas o que existiria de novo? “O espírito que parece é que os americanos dormiram por 20 anos nos desertos do Afeganistão e do Iraque e não viram que estava surgindo uma série de competidores a eles, como a China e a Rússia”, afirmou Sandro Teixeira Moita, professor do programa de pós-graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).
Até o ataque do Hamas, China e Rússia – nessa ordem – eram apresentadas como as mais perigosas ameaças à segurança dos EUA. Para o coronel Paulo Filho, a nova estratégia nacional de defesa dos Estados Unidos aprofundou a alteração de foco ocorrida no governo de Donald Trump, a qual listou China, Rússia, Irã e Coreia do Norte como as maiores “ameaças”. “A mudança se detém no fato de que, até então, o terrorismo figurava, nos documentos oficiais dos EUA, como principal ameaça à segurança do país.”
Ainda para Paulo Filho, a inclusão do Irã nos Brics conferiu ao grupo uma dimensão geopolítica que estava ausente: “Os Estados Unidos consideram esta ação desfavorável aos seus interesses”. O Irã preocupa os americanos em razão do programa nuclear, das exportações de armas e do papel desestabilizador no Oriente Médio. “Os EUA começaram a expressar abertamente a sua apreensão, inclusive no domínio militar, como exemplificado pelas análises da general Richardson.”
Essa ainda é uma realidade que parece distante para a maioria dos brasileiros. Enquanto Gaza era bombardeada pelo Tzahal, as Forças de Defesa de Israel (FDI), a mais nova ameaça visível à segurança em São Paulo vinha do furto de 13 metralhadoras Browning calibre .50 e de outras oito de calibre 7,62 mm do Arsenal do Exército, em Osasco, na Grande São Paulo. A última vez que as primeiras foram usadas no Estado havia sido em 2018, quando a Polícia Militar precisou desse tipo de armamento para conter o plano do Primeiro Comando da Capital (PCC) de resgatar Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.
Na época, o general Luiz Eduardo Ramos, então comandante militar do Sudeste, providenciou para que homens das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) fossem treinados para manusear essas armas. É por isso que agora a cúpula da Segurança Pública teme que elas caiam justamente nas mãos do PCC. Essa é a “consequência catastrófica” imaginada pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, conforme publicou em rede social. De posse de tal equipamento, como seria possível deter um assalto do PCC à Penitenciária 2, de Presidente Venceslau, onde a cúpula da facção no Estado está encarcerada?
O que aterroriza os policiais paulistas é o crime organizado e sua convergência cada vez maior com mercados ilegais que abastecem também as organizações terroristas. No começo do ano, a Europolconcluiu uma operação onde detectou o envio de fuzis do Paquistão para o Brasil feitos pela ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, que, assim, pagava o PCC por um carregamento de cocaína. É neste mesmo mercado internacional de armas que organizações terroristas como o Hamas se abastecem.
A convergência entre as atividades do terror e da criminalidade organizada foi o que lembrou o major Frederico Salóes, instrutor da Eceme, durante o seminário Análise Situação Israel x Hamas, do Observatório Militar da Praia Vermelha. “No ciclo da atividade terrorista não podemos esquecer do nexo do crime com o terror. Temos a cooperação entre organizações criminosas e organizações terroristas. Elas convergem em objetivos e se hibridizam em diversas estruturas formais, ilícitas e lícitas para alcançarem seus objetivos. O atentado terrorista nunca é uma situação pontual. O ciclo da atividade terrorista se dá por uma estrutura sistêmica que exige uma resposta sistêmica do Estado”, disse.
Nas últimas décadas, foi o crime organizado o maior responsável pelo furto de armas dos arsenais do Exército. No Rio e em São Paulo, as armas desviadas foram depois recuperadas. Nos anos 1960, quem colocava os olhos nas reservas de armas dos quartéis era a guerrilha. Em sua mais ousada ação, o capitão Carlos Lamarca deixou o quartel do 4º RI, em Quitaúna, na mesma Osasco, com três subordinados em uma Kombi com 63 fuzis, três submetralhadoras e uma pistola. Só não levaram mais armas porque o caminhão que seria usado para transportá-las fora apreendido dias antes em Itapecerica da Serra.
O último dos fuzis levados por Lamarca só foi recuperado em 1978, depois que um ex-guerrilheiro se aventurou em roubar um carro, nos Jardins. Por enquanto, o Exército não anunciou o encontro de nenhuma das metralhadoras. É provável que armas como essas sejam colocadas à venda no mesmo mercado mundial, onde os lucros das diversas atividades ilícitas se encontram. É por isso que a general Richardson citou em depoimento ao Congresso, em 8 de março, o PCC como uma ameaça à segurança americana na região?
“Ela já citou em entrevistas o paradoxo de que a ‘região mais importante’ é a que merece menor atenção do seu país. Isso abriria espaço para a entrada dos ‘competidores estratégicos’ (dos EUA)”, afirmou o coronel Paulo Filho. Enfim, o que estaria por trás desse grande movimento, que procura pôr no mesmo balaio todos os gatos que competem com os americanos na América Latina?
“Eles (os EUA) redobraram os esforços de aproximação com os governos e as Forças Armadas na região, que eles deixaram de lado por muito tempo. Estão procurando recuperar o tempo perdido”, disse o professor Teixeira Moita. O problema, segundo ele, é que o poderio chinês não se mede apenas pela questão militar, mas também por sua dimensão econômica. “Os americanos vão ter de se mostrar parceiros econômicos, que é o que os chineses oferecem, se não quiserem perder parceiros na América Latina.”
Há um duplo movimento para mostrar que a política americana é a de promoção da segurança interna e externa da região. Ele coloca o Hezbollah e o Hamas no mesmo bloco que o Irã, a China e a Rússia e une o combate ao terror e à luta contra o crime organizado. Trata-se de uma lógica parecida com a da Guerra Fria ao afirmar: “Eu posso trazer segurança a vocês, respeitando as suas liberdades e seus valores”. A guerra ao Hamas deve aprofundar esse caminho. E aumentar ainda mais os desafios para a diplomacia brasileira.
A general Laura Richardson é conhecida pela franqueza com que expõe o pensamento e as preocupações do Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos. Em mais uma entrevista, desta vez, para a Fundação para a Defesa da Democracia, um instituto criado após o 11 de setembro de 2001, ela aproximou as ameaças dos competidores estratégicos dos EUA – China, Rússia e Irã – à representada pelo Hezbollah à segurança do Ocidente. O evento aconteceu no dia 11, em meio à semana em que Israel foi atacado pelos terroristas do Hamas. Richardson mencionou duas vezes o Brasilao tratar das “intenções malignas” dos adversários.
“As atividades do Hezbollah (na América Latina) obviamente são uma preocupação”, afirmou a general. Hezbollah na América do Sul é quase sempre sinônimo da Tríplice Fronteira, entre Argentina, Paraguai e Brasil. A citação ao grupo libanês aconteceu logo após ela listar movimentos da China e da Rússia na região, como a viagem de Serguei Lavrov, ministro das relações exteriores da Rússia, por Nicarágua, Venezuela e Cuba, em abril. “Mas, depois (Lavrov), também (foi) pelo Brasil para reuniões; e o presidente iraniano veio ao hemisfério, em junho”, lembrou Richardson.
Em seguida, mencionou as passagens de navios de guerra do Irã e da Rússia na América do Sul para assinalar as “intenções malignas” dos competidores dos EUA na região. “Navios de guerra iranianos, que estão fazendo um giro global, vieram para o hemisfério a partir do Pacífico e tentaram fazer escalas em inúmeras cidades, que foram negadas. E a fragata acabou recebida no Rio.”
A general, por fim, advertiu: “Estamos vendo uma tendência de aumento de ações na região também por parte de nossos concorrentes estratégicos e, novamente, é muito preocupante, porque acho que a região está insegura e instável e nós podemos fazer melhor neste momento vulnerável para nós mantermos fora concorrentes estratégicos, que têm intenções malignas”. As falas da general seriam apenas mais uma forma de atrair atenção – e recursos – para seu comando? É possível.
Ou seria uma reedição do eixo do mal? Analistas, como o coronel da reserva Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, lembram que essas ameaças já estavam presentes na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, publicada em outubro de 2022. Mas o que existiria de novo? “O espírito que parece é que os americanos dormiram por 20 anos nos desertos do Afeganistão e do Iraque e não viram que estava surgindo uma série de competidores a eles, como a China e a Rússia”, afirmou Sandro Teixeira Moita, professor do programa de pós-graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).
Até o ataque do Hamas, China e Rússia – nessa ordem – eram apresentadas como as mais perigosas ameaças à segurança dos EUA. Para o coronel Paulo Filho, a nova estratégia nacional de defesa dos Estados Unidos aprofundou a alteração de foco ocorrida no governo de Donald Trump, a qual listou China, Rússia, Irã e Coreia do Norte como as maiores “ameaças”. “A mudança se detém no fato de que, até então, o terrorismo figurava, nos documentos oficiais dos EUA, como principal ameaça à segurança do país.”
Ainda para Paulo Filho, a inclusão do Irã nos Brics conferiu ao grupo uma dimensão geopolítica que estava ausente: “Os Estados Unidos consideram esta ação desfavorável aos seus interesses”. O Irã preocupa os americanos em razão do programa nuclear, das exportações de armas e do papel desestabilizador no Oriente Médio. “Os EUA começaram a expressar abertamente a sua apreensão, inclusive no domínio militar, como exemplificado pelas análises da general Richardson.”
Essa ainda é uma realidade que parece distante para a maioria dos brasileiros. Enquanto Gaza era bombardeada pelo Tzahal, as Forças de Defesa de Israel (FDI), a mais nova ameaça visível à segurança em São Paulo vinha do furto de 13 metralhadoras Browning calibre .50 e de outras oito de calibre 7,62 mm do Arsenal do Exército, em Osasco, na Grande São Paulo. A última vez que as primeiras foram usadas no Estado havia sido em 2018, quando a Polícia Militar precisou desse tipo de armamento para conter o plano do Primeiro Comando da Capital (PCC) de resgatar Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola.
Na época, o general Luiz Eduardo Ramos, então comandante militar do Sudeste, providenciou para que homens das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) fossem treinados para manusear essas armas. É por isso que agora a cúpula da Segurança Pública teme que elas caiam justamente nas mãos do PCC. Essa é a “consequência catastrófica” imaginada pelo secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, conforme publicou em rede social. De posse de tal equipamento, como seria possível deter um assalto do PCC à Penitenciária 2, de Presidente Venceslau, onde a cúpula da facção no Estado está encarcerada?
O que aterroriza os policiais paulistas é o crime organizado e sua convergência cada vez maior com mercados ilegais que abastecem também as organizações terroristas. No começo do ano, a Europolconcluiu uma operação onde detectou o envio de fuzis do Paquistão para o Brasil feitos pela ‘Ndrangheta, a máfia da Calábria, que, assim, pagava o PCC por um carregamento de cocaína. É neste mesmo mercado internacional de armas que organizações terroristas como o Hamas se abastecem.
A convergência entre as atividades do terror e da criminalidade organizada foi o que lembrou o major Frederico Salóes, instrutor da Eceme, durante o seminário Análise Situação Israel x Hamas, do Observatório Militar da Praia Vermelha. “No ciclo da atividade terrorista não podemos esquecer do nexo do crime com o terror. Temos a cooperação entre organizações criminosas e organizações terroristas. Elas convergem em objetivos e se hibridizam em diversas estruturas formais, ilícitas e lícitas para alcançarem seus objetivos. O atentado terrorista nunca é uma situação pontual. O ciclo da atividade terrorista se dá por uma estrutura sistêmica que exige uma resposta sistêmica do Estado”, disse.
Nas últimas décadas, foi o crime organizado o maior responsável pelo furto de armas dos arsenais do Exército. No Rio e em São Paulo, as armas desviadas foram depois recuperadas. Nos anos 1960, quem colocava os olhos nas reservas de armas dos quartéis era a guerrilha. Em sua mais ousada ação, o capitão Carlos Lamarca deixou o quartel do 4º RI, em Quitaúna, na mesma Osasco, com três subordinados em uma Kombi com 63 fuzis, três submetralhadoras e uma pistola. Só não levaram mais armas porque o caminhão que seria usado para transportá-las fora apreendido dias antes em Itapecerica da Serra.
O último dos fuzis levados por Lamarca só foi recuperado em 1978, depois que um ex-guerrilheiro se aventurou em roubar um carro, nos Jardins. Por enquanto, o Exército não anunciou o encontro de nenhuma das metralhadoras. É provável que armas como essas sejam colocadas à venda no mesmo mercado mundial, onde os lucros das diversas atividades ilícitas se encontram. É por isso que a general Richardson citou em depoimento ao Congresso, em 8 de março, o PCC como uma ameaça à segurança americana na região?
“Ela já citou em entrevistas o paradoxo de que a ‘região mais importante’ é a que merece menor atenção do seu país. Isso abriria espaço para a entrada dos ‘competidores estratégicos’ (dos EUA)”, afirmou o coronel Paulo Filho. Enfim, o que estaria por trás desse grande movimento, que procura pôr no mesmo balaio todos os gatos que competem com os americanos na América Latina?
“Eles (os EUA) redobraram os esforços de aproximação com os governos e as Forças Armadas na região, que eles deixaram de lado por muito tempo. Estão procurando recuperar o tempo perdido”, disse o professor Teixeira Moita. O problema, segundo ele, é que o poderio chinês não se mede apenas pela questão militar, mas também por sua dimensão econômica. “Os americanos vão ter de se mostrar parceiros econômicos, que é o que os chineses oferecem, se não quiserem perder parceiros na América Latina.”
Há um duplo movimento para mostrar que a política americana é a de promoção da segurança interna e externa da região. Ele coloca o Hezbollah e o Hamas no mesmo bloco que o Irã, a China e a Rússia e une o combate ao terror e à luta contra o crime organizado. Trata-se de uma lógica parecida com a da Guerra Fria ao afirmar: “Eu posso trazer segurança a vocês, respeitando as suas liberdades e seus valores”. A guerra ao Hamas deve aprofundar esse caminho. E aumentar ainda mais os desafios para a diplomacia brasileira.
Estadão