“Amiga, você foi estuprada.” “Não, não fui.” A primeira reação de Ella* ao ser questionada por uma amiga sobre a violência sexual que sofreu foi negar.
Mesmo tendo em seu celular um vídeo, gravado na madrugada de 31 de janeiro de 2019, em que aparece sendo penetrada pelo ator Gustavo Novaes com quem já havia tido um breve relacionamento.
Gustavo, que já participou de novelas da Globo e da Record, além de filmes e séries, foi até a casa de Ella quando ela estava alcoolizada e, segundo relato da vítima, a filmou sem consentimento. Essa gravação, que a diretora mostrou à amiga e à qual Universa teve acesso, indicou a violência sexual. Ela encontrou o vídeo ao mexer no celular do ator, apagou do aparelho e enviou para si própria por WhatsApp.
Nas imagens, Gustavo aparece de pé, andando até um quarto. Depois, vêm as cenas de uma mulher apoiada de bruços, inerte. Ele a penetra, e ela balbucia algumas palavras, incompreensíveis. Ella afirma que estava completamente embriagada e não se lembra do que disse. Não se recorda nem da relação sexual, que só soube que aconteceu por causa do vídeo. Lapsos de memória, culpa e vergonha, diz, a barraram de aceitar que havia sido vítima de estupro. O caso ocorreu no Rio de Janeiro.
“É muito difícil entender. Não consigo nem dizer [que foi estuprada]. A palavra é feia, dói. Eu tinha o vídeo, mas não acreditava no que via. Não era possível que alguém fosse capaz de fazer aquilo, alguém que recebi na minha casa”, diz, em conversa com Universa por chamada de vídeo.
O ator nega as acusações e diz que houve consentimento tanto para a gravação quanto para o ato sexual.
“Na delegacia, só consegui relatar o que aconteceu”
Ella trabalhava em uma emissora de TV — que não será especificada a pedido da vítima — quando conheceu Gustavo. Os dois se relacionaram por um mês e meio, segundo relata. Depois de um tempo, prestes a viajar para Los Angeles onde faria um curso, ela fez uma festa de despedida em um bar. Ao chegar em casa, alcoolizada, ele insistiu, por meio de mensagens, em encontrá-la.
“Não me lembro de muita coisa, me vêm flashes de memória. Ele foi até minha casa e sei que acordei com o celular dele na minha cama. Perguntei por que e ele disse que colocou uma música para eu dormir. Achei estranho. Depois, ele começa a me filmar seminua, enquanto estava pegando comida, só que com flash. Isso fez com que eu começasse a desconfiar. Queria apagar esse vídeo feito com flash, mas achei o outro. Minha reação na hora foi mandar para mim por WhatsApp e apagar do aparelho dele.” O vídeo em que aparecem cenas íntimas fez com que Ella procurasse uma delegacia para denunciá-lo.
Em troca de mensagens, à qual a reportagem teve acesso, a diretora reitera na conversa que não autorizou que fosse filmada por ele. Gustavo responde: “Tá bem? Desculpe por ter gravado.” Afirma ainda que tinha filmado para que os dois vissem as imagens juntos. Em dado momento, a chama de “louca” e diz: “Para de trazer problema pra sua vida”.
Após uma amiga insistir que ela fosse à delegacia, Ella decidiu denunciá-lo. À polícia, diz que só conseguiu relatar o que aconteceu, sem apontar crimes que teriam ocorrido. Até então, o caso era tratado como crime de registro não autorizado de intimidade sexual.
Ao longo do processo de denúncia, conta a diretora, se deu também a elaboração de que havia sido vítima de estupro de vulnerável — quando a pessoa não tem discernimento sobre o ato, não é capaz de consentir nem de oferecer resistência ao contato sexual, segundo a lei. Isso pode acontecer em situações em que a vítima está alcoolizada ou dopada, quando é menor de 14 anos ou tem deficiência mental.
“Nem eu me dava conta de que tinha sido abusada e não queria falar que sim, fui. Porque se eu falasse ia ter certeza que aconteceu. Fazia terapia e não dizia a palavra [estupro]. Dizia que ‘aconteceu aquele negócio’. Até que meu terapeuta me questionou: ‘Se fosse uma amiga sua nesse vídeo, o que você diria para ela?’. E respondi que diria que ela foi estuprada”, afirma Ella.
Coação de chefe de emissora para retirar queixa
Na emissora em que trabalhava, Ella diz ter sido abordada por um profissional em cargo de chefia pedindo que ela retirasse a queixa contra Gustavo. “Ele disse que não era para deixar o Gustavo ser preso nem deixar que a emissora ficasse sabendo da história.”
Dias depois, a diretora foi convocada para ir à delegacia pela terceira vez, depois que o ator já tinha dado seu depoimento, e meses após registrar queixa. Foi só então que o vídeo foi visto pelas autoridades policiais. “A delegada assistiu ao vídeo na minha frente, e eu com aquilo na cabeça de que não podia deixar o Gustavo ser preso. Na hora, com medo, afirmei que o sexo tinha sido consentido. Ela ainda questionou, dizendo que eu estava desacordada, respondi que foi só um cochilinho.”
Na declaração registrada na Deam (Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher) em dezembro de 2019 e assinada pela escrivã Ellen de Mattos consta que Ella quis esclarecer “que nunca se sentiu vítima de estupro”, sucedido por um adendo da autoridade policial: “apesar de no vídeo estar registrado o autor fazendo sexo com a declarante aparentemente desacordada”.
“Ninguém te prepara para ser estuprada, ninguém fala que tem que procurar um advogado para te acompanhar na delegacia, para explicar exatamente qual é o crime e a queixa que se tem que fazer”, diz Ella a Universa. “E também tem a culpa, por muito tempo achei que de alguma maneira poderia ter feito algo, tinha como ter acordado, me questionava por que aquilo aconteceu, não aceitava. Ainda é vergonhoso admitir.”
O passo mais recente do processo foi um pedido do Ministério Público, assinado pela promotora Érika Prado Alves Schittini, para que houvesse uma investigação relacionada ao crime de estupro de vulnerável e que o vídeo fosse periciado. Com isso, caso haja indícios, esse crime terá de ser incluído no processo.
“A palavra da vítima tem que ter credibilidade”, pontua a advogada de Ella, Priscila Pamela dos Santos. “Juntamos provas que demonstram e um crime de estupro de vulnerável, seja pelo álcool ou por estar adormecida. Pedi para incluir isso na denúncia, indiquei três testemunhas, entre eles o vizinho que estava lá, que ela pediu para não ir embora porque não queria ficar sozinha com o Gustavo e porque estava muito bêbada.”
“Quando fui procurada por Ella a encontrei fragilizada, adoecida e clamando por apoio jurídico. Ela me contou ter sido vítima de crime de estupro, mas que ainda assim não se sentia segura para enfrentar aquela situação. Tinha medo de ser desacreditada, afinal, ela própria se culpava muito. O que fiz foi explicar a ela o que a lei entendeu como vulnerabilidade e que era exatamente a condição a que estava submetida no momento dos fatos”, diz a advogada.
“Se o nível de álcool é tão elevado a ponto de a vítima não conseguir se lembrar do que viveu, denota justamente que ela não tinha a liberdade para consentir e que estava em situação de vulnerabilidade. Essa compreensão é fundamental para que homens e mulheres entendam os limites do consentimento e da liberdade sexual.”
“Perícia em vídeo vai mostrar que houve consentimento”, diz defesa
O ator Gustavo Novaes foi procurado pela reportagem de Universa e enviou o contato de seu advogado, João Bernardo Kappen, que nega todas as acusações de Ella e diz que houve consentimento tanto para a gravação do vídeo quanto para o ato sexual.
“O vídeo apresentado não foi submetido à perícia, que constataria que os dois, enquanto estavam tendo uma relação sexual, conversaram, e ela tinha dado consentimento ao vídeo”, afirma o advogado, que diz ainda que o vídeo é maior do que o apresentado. Nas imagens, é impossível entender o que Ella balbucia.
Agora, com a manifestação do MP para que sejam feitas investigações relacionadas ao crime de estupro de vulnerável, a gravação será analisada por peritos. “A perícia vai mostrar que, na conversa que os dois travaram enquanto mantinham a relação sexual, ela deu consentimento à relação, independentemente de estar alcoolizada.”
João Bernardo Kappen afirma ainda que “foi a advogada atual que convenceu que ela foi estuprada”. “Porque ela diz que o depoimento foi consensual, não diz em depoimento em juízo, a advogada é que surge com essa tese que nem ela [a vítima] mesma confirma.”
Como obter ajuda em casos de violência sexual
Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.
Também é possível ter orientações ligando para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher do governo federal. É anônimo e funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas para serem procurados e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656–5008.
É recomendável, se possível, que a vítima faça um boletim de ocorrência em uma delegacia da mulher, caso haja essa especialidade na região. Se não houver, o registro pode ser feito em uma delegacia comum. Mesmo que não consiga se lembrar dos fatos ou indicar um possível agressor, o mesmo homem pode ter feito outras vítimas. O registro da ocorrência abre a possibilidade de investigar, colher provas e pode ajudar as autoridades a identificarem o autor do crime.
FONTE: UNIVERSA/UOL