“A obesidade encontra seu adversário”: é com esse título que a prestigiosa revista científica Science elegeu os análogos de GLP-1 como o ‘avanço de 2023’. A classe de medicamentos, à qual pertence o famoso Ozempic, teve início ainda nos anos 80 na busca por uma nova alternativa para diabetes. O destaque, porém, veio pela eficácia inédita para perda de peso, com números próximos aos da bariátrica. Agora, ainda que o elevado custo e o estigma que envolve a obesidade sejam desafios, especialistas consideram que, pela primeira, a doença de fato encontrou um oponente à sua altura.
— A obesidade é hoje um dos maiores problemas de saúde no mundo e tem índices crescentes. No Brasil, a previsão é que, em 10 anos, atinja 40% da população. Só que todos os tratamentos haviam sido frustrantes, com resultados ruins e perfis perigosos. Agora estamos num momento em que pela primeira vez temos opções eficazes e que se traduzem em melhores desfechos de saúde — diz Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (ABESO) e vice-presidente da Federação Mundial da Obesidade para América Latina (Flaso).
Médicos que trabalham com obesidade celebraram a escolha da Science. Pontuam que a revista não se restringe a temas médicos, o que sublinha a relevância da decisão. Segundo a publicação científica, os remédios estão “remodelando a medicina, a cultura popular e até mesmo os mercados de ações globais de maneiras ao mesmo tempo eletrizantes e desconcertantes”.
O primeiro ponto para o destaque é a eficácia. Enquanto fármacos antigos proporcionavam uma perda de 6% a 8% do peso, os estudos mais recentes com a semaglutida (do Ozempic e do Wegovy, ambos da Novo Nordisk) mostraram uma redução de 17,4%, após 68 semanas. Já a diminuição com a tirzepatida (do Mounjaro, da Eli Lilly) chegou a 25,3% após 88 semanas. Ambos os trabalhos foram publicados na JAMA.
— Eles também têm uma segurança maior que os antigos, com poucos efeitos colaterais que são manejáveis. Além disso, já há trabalhos mostrando que levam a benefícios para esteatose hepática, doença renal, para reduzir eventos cardiovasculares, melhorar qualidade de vida na insuficiência cardíaca. Então combinam potência para perda de peso, segurança bem estabelecida e benefícios adicionais para a saúde — diz Rodrigo Moreira, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e atual diretor do departamento de Diabetes da entidade.
Em agosto, um estudo com a semaglutida mostrou que o remédio melhorou os sintomas da insuficiência cardíaca, como melhor aptidão física e redução da fadiga e falta de ar. Três meses depois, outro trabalho constatou uma redução no risco de eventos cardiovasculares graves em 20% entre os pacientes.
Halpern diz que é a primeira vez que um remédio interfere nos problemas de saúde associados à obesidade. E o potencial dos remédios pode ser ainda maior, para diagnósticos que vão além do peso. A Science, por exemplo, destacou que a semaglutida está sendo estudada para quadros de dependência após relatos de usuários sobre terem parado de beber ou largado o cigarro.
Há ainda pesquisas sendo conduzidas para tratamento do Alzheimer, principal causa de demência, por estudos indicaram um papel na doença da resistência à insulina no cérebro. Segundo a plataforma Clinical Trials, dos EUA, resultados iniciais são esperados em 2025.
Como os remédios funcionam e quais estão disponíveis no Brasil?
Os medicamentos são chamados de análogos de GLP-1 pois simulam um hormônio de mesmo nome no corpo. Há receptores dele em diferentes locais: no pâncreas, por exemplo, essa interação aumenta a produção de insulina, motivo pelo qual os remédios foram desenvolvidos inicialmente para diabetes.
Já no estômago, o GLP-1 reduz a velocidade da digestão da comida e, no cérebro, ativa a sensação de saciedade. Com isso, a pessoa sente menos fome e, consequentemente, reduz as calorias ingeridas por dia e perde peso.
Os fármacos começaram a ser pesquisados ainda nos anos 80 pelo papel no controle dos níveis de açúcar no sangue. Mas, já nos anos 90, experimentos com camundongos indicavam o efeito surpreendente de inibir o apetite dos animais.
Mais tarde, os testes clínicos confirmaram o potencial de reduzir o peso, e a liraglutida, princípio ativo do Saxenda, da Novo Nordisk, foi o primeiro análogo do GLP-1 aprovado para tratar da obesidade, nos EUA, em 2014.
Desde então, novas moléculas, mais eficazes, foram desenvolvidas: a semaglutida, do Ozempic e do Wegovy, e a tirzepatida, do Mounjaro e do Zepbound. No Brasil, o único disponível é o Ozempic, que é oficialmente indicado para diabetes, embora seja utilizado de forma off-label (finalidade diferente da bula) para perda de peso.
O Wegovy, que contém uma dose superior da semaglutida e indicação para obesidade em bula, foi aprovado neste ano, mas ainda não chegou ao país devido à alta demanda global. A expectativa é que comece a ser vendido em 2024.
A tirzepatida, da Eli Lilly, também recebeu o aval da Anvisa neste ano, mas para diabetes. A previsão também é que o remédio chegue ao Brasil no ano que vem. O uso para obesidade já foi solicitado pela farmacêutica e está em análise pela agência. Nos EUA, embora seja a mesma substância e na exata mesma dose, a tirzepatida com essa finalidade ganhou o nome de Zepbound.
Acesso e estigma são desafios
Ainda que possam representar um ponto de virada na forma como o mundo lida com a obesidade, há desafios que tornam distante a perspectiva de que as cerca de 1 bilhão de pessoas com a doença no mundo (1 a cada 8), segundo o Atlas da Obesidade, acessem o tratamento.
— O maior entrave nesse momento são os preços. Mas todo medicamento quando é lançado, e no período de vigência da patente, tem um custo alto. Então daqui a alguns anos devemos ter uma redução significativa e ampliação do uso. Mas hoje ainda são acessíveis a somente uma parcela muito pequena da população — diz Moreira.
O preço máximo do Ozempic para um mês, por exemplo, varia de R$ 994,03 a R$ 1.289,75 no Brasil, de acordo com dados da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Os medicamentos não estão disponíveis no SUS e não têm cobertura obrigatória pelos planos. Além disso, o uso, ao menos para a maior parte dos pacientes, deve ser ininterrupto – estudos em que pacientes pararam o tratamento mostraram um retorno de até 14% do peso.
— A obesidade é uma doença crônica, precisa ser vista dessa forma. Se você usar por um tempo curto e parar, vai voltar a ganhar peso. Assim como um paciente com hipertensão que, se interrompe o tratamento, volta a ter pressão alta. Agora estamos aprendendo sobre a segurança nesse longo prazo. Os estudos mais longos e o monitoramento do uso na vida real estão mostrando que não há novidades em termos de efeitos colaterais. Por enquanto, não há preocupações nesse sentido — diz Halpern.
Os efeitos, geralmente gastrointestinais, como náuseas e vômitos, costumam ser leves e temporários. O endocrinologista cita que outros remédios de longo prazo, como os antidepressivos, têm um perfil pior. Cynthia Valério, diretora da Abeso e pesquisadora do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE), no Rio, concorda e diz que a definição dessas diretrizes de uso precisam ser o foco a partir de agora das autoridades médicas:
— O protocolo clínico tem que acompanhar a evolução da ciência. O desafio agora é selecionar qual a medicação certa para o paciente correto, os impactos na saúde. Essa questão de quem mais vai se beneficiar, quem mais precisa, considerar não só o IMC, mas as comorbidades que acompanham, é uma análise que tem que ser feita como um todo pelas autoridades médicas porque impacta todo o sistema de saúde.
Os endocrinologistas chamam atenção, no entanto, que outro grande desafio é a aceitação, até mesmo pela comunidade médica e pelos pacientes, de que obesidade nada tem a ver com falta de foco ou preguiça, mas sim com uma doença multifatorial baseada em fatores genéticos e ambientais.
— O estigma que ainda enfrentamos contra a doença é muito grande. Vejo pacientes se culpando pela doença. Você vai se culpar por ter um câncer? Não é uma questão preguiça, de ser uma pessoa sedentária. É um diagnóstico. Mas a própria doença passa a ser vista de outra maneira quando conquistamos medicamentos mais eficazes que conseguem atingir níveis de redução do peso que antes só víamos com cirurgia bariátrica — diz Valério.
O Globo