Pedro França/Agência Senado
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve “sorte” na economia em seu primeiro ano, ajudado pelo desempenho extraordinário do agronegócio no primeiro trimestre e por um cenário externo desafiador para os países desenvolvidos e outros emergentes, o que deixou o Brasil mais bem posicionado em termos competitivos. A avaliação é de Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), com passagens por BTG Pactual e RPS Capital.
“O governo deu sorte neste ano. Teve sorte externamente, por causa da piora fiscal do mundo, que ficou em uma situação muito mais complicada”, afirma Barros, em entrevista ao Metrópoles. “No cenário interno, o governo também deu sorte com a supersafra do agro, que salvou o primeiro semestre em termos de PIB. Não fosse a supersafra, teríamos um PIB muito pior neste ano. Então, podemos dizer que foi um misto de sorte com algumas medidas tomadas pelo governo que, se não são excelentes, são menos piores do que o mercado projetava no início do ano.”
Na conversa com a reportagem, em que faz um balanço da economia do país em 2023 e traça perspectivas para 2024, o economista destaca a aprovação da reforma tributária, sacramentada pela Câmara dos Deputados na sexta-feira (15/12), mas alerta para os problemas do plano fiscal do governo, que classifica como “falho”, “frágil” e excessivamente dependente do aumento de receitas.
“Quando o mercado olha para o Fernando Haddad, vê uma tentativa de realmente entregar algo melhor do que o que temos hoje. Mas sabemos que o Haddad é uma ilha dentro do governo”, diz Barros. “E o plano do Haddad é falho, é frágil. Ele só tem uma bala. A bala de prata é conseguir ter sucesso nessas medidas de receita. Se der errado, já era. Não há nenhum plano B. O plano de voo fiscal não é equilibrado.”
Segundo o ex-diretor da IFI, a tendência é a de que o Brasil enfrente um ambiente econômico muito mais turbulento em 2024, com o Produto Interno Bruto (PIB) confirmando a desaceleração registrada nos últimos meses e inflação e desemprego voltando a subir.
“Em 2024, a reboque da desaceleração do PIB, teremos o desemprego aumentando e a inflação de alimentos subindo. Será um ano muito mais complicado. O PIB mais fraco do ano que vem vai afetar o fiscal. Com um crescimento menor, o governo terá menos receita”, projeta.
Leia os principais trechos da entrevista de Gabriel Leal de Barros ao Metrópoles:
Na sexta-feira (15/12), a Câmara aprovou a MP das Subvenções e a reforma tributária. Qual é o balanço do desempenho da equipe econômica em 2023?
Voltando lá para o início do ano, o governo começou com sinais ruins. O presidente Lula minimizou diversas vezes a importância da responsabilidade fiscal, falando em direção oposta daquilo que deveria ser feito para manter as contas equilibradas. Tivemos um aumento extraordinário de gastos com a PEC da Transição. Depois houve a expectativa de que o Marco Fiscal autorizasse o aumento de despesa de forma semelhante ao que nós vimos em governos anteriores do PT. O mercado estava receoso de que a nova regra fiscal viesse muito frouxa, mas ela veio, de fato, menos frouxa. Não é uma regra apertada, mas é menos frouxa do que se temia. Isso não a torna uma boa regra. Eu mantenho todas as críticas que fiz desde a apresentação da proposta. O Marco Fiscal continua não sendo sólido nem crível. Ele só fica de pé em um cenário de arrecadação benevolente, totalmente positivo – seja porque o governo conseguiu receitas extraordinárias, que é o que está acontecendo, seja porque o PIB surpreendeu. Você precisa ter essas surpresas recorrentes. Tem de ter surpresa todo ano para o Marco Fiscal ficar de pé. Se e quando você tiver um cenário menos positivo de crescimento, a fragilidade do Marco Fiscal fica muito evidente. Apesar de ter uma série de problemas, no fim das contas, o mercado leu o intervalo de crescimento real do gasto autorizado no Marco Fiscal como algo positivo.
Qual é a real situação fiscal do Brasil?
Uma coisa que ajudou o Brasil é menos o que nós fizemos de absoluto e mais o que houve de relativo. No relativo, o fiscal do Brasil não está tão pior, na margem, do que os países emergentes. Não quero minimizar a situação fiscal do Brasil. Mas, quando comparamos com os emergentes, esse universo está melhor. Tem muito dinheiro que deixou de ir para a Rússia, caíram drasticamente os investimentos externos na Turquia, a guerra híbrida entre China e Estados Unidos deixou muitos investidores apreensivos e eles não estão colocando dinheiro na China… Não é que o Brasil ficou mais bonito. Os emergentes ficaram mais feios.
O governo brasileiro fez a lição de casa ou foi beneficiado por fatores externos?
Não é que nós tenhamos feito o nosso dever de casa. É que, no relativo, comparado com os outros países emergentes, o Brasil ficou menos pior. O governo também deu sorte neste ano. Teve sorte externamente, por causa da piora fiscal do mundo, que ficou em uma situação muito mais complicada. A guerra híbrida entre China e EUA trouxe para a mesa outras opções de cadeia de suprimento, o que vale para os EUA, o Canadá ou a Inglaterra. Não tem guerra na América Latina, o que cacifa a região para absorver uma parte dessa cadeia de suprimentos. O México é, claramente, o país mais favorecido, por estar do lado dos EUA. E, no cenário interno, o governo também deu sorte com a supersafra do agro, que salvou o primeiro semestre em termos de PIB. Não fosse a supersafra, teríamos um PIB muito pior neste ano. Então, podemos dizer que foi um misto de sorte com algumas medidas tomadas pelo governo que, se não são excelentes, são menos piores do que o mercado projetava no início do ano.
Há um debate em torno do cumprimento da meta de zerar o déficit primário em 2024, como estipula o novo Marco Fiscal. Setores do PT e do governo criticam a medida e defendem maior flexibilidade. O Marco Fiscal corre o risco de se tornar uma peça de ficção?
O déficit será revisto no ano que vem. Depois da derrapada do Lula, ao praticamente anunciar o descumprimento da meta de déficit zero em 2024, houve uma grande surpresa no mercado, que raciocinou como se o governo fosse um agente racional. Para um agente racional, era muito óbvio que o debate sobre a mudança da meta deveria ser postergado para o ano que vem porque o Banco Central está em franco processo de corte de juros. Iniciar essa discussão agora atrapalharia, como realmente atrapalhou, o processo de queda da Selic. O Haddad tentou jogar essa questão para frente, mas a ala mais política do governo quis antecipar. Não há dúvida de que a meta será alterada no ano que vem; a questão é saber para quanto, se para 0,5% ou 1% do PIB. Nesse contexto, uma questão muito relevante é quanto a MP 1185 (MP das Subvenções) vai entregar de receita. É uma medida extremamente relevante. (A MP das Subvenções altera a regra para tributação de grandes empresas que recebem benefícios fiscais nos estados. A proposta seguirá para análise do Senado. Se aprovado nos moldes desenhados pelo Ministério da Fazenda, o projeto renderá cerca de R$ 35 bilhões ao governo federal.) Isso deve afetar de forma muito sensível a meta de déficit para o ano que vem, evitando um déficit muito grande por parte do governo. Se essa MP for, de fato, desidratada e o potencial de receita ficar em R$ 20 bilhões ou R$ 30 bilhões, o governo não terá a menor condição de manter a meta de déficit zero e terá de revisá-la no começo do ano que vem.
Qual é a percepção do mercado, hoje, em relação ao compromisso do governo com o ajuste fiscal?
A mudança de meta do déficit no ano que vem consolida o diagnóstico de que o Marco Fiscal não é sólido nem crível. Ele tem artifícios para o governo cumpri-lo virtualmente, mas não é efetivo para controlar a trajetória fiscal do país. O mercado tem sentimentos mistos em relação a esse compromisso. Quando o mercado olha para o Haddad, vê uma tentativa de realmente entregar algo melhor do que o que temos hoje. Mas sabemos que o Haddad é uma ilha dentro do governo. E, mesmo assim, o plano de consolidação fiscal do Haddad tem problemas. Ele aposta única e exclusivamente em medidas pelo lado da receita. Não há nenhuma medida pelo lado do gasto. É um governo que se nega a adotar qualquer medida pelo lado da despesa. O plano do Haddad é falho, é frágil. Ele só tem uma bala. A bala de prata é conseguir ter sucesso nessas medidas de receita. Se der errado, já era. Não há nenhum plano B. O plano de voo fiscal não é equilibrado. O mercado sabe disso, entende a fragilidade do plano, mas, enquanto o Congresso está ajudando e aprovando as medidas, o mercado vai dando esse benefício da dúvida e empurrando o problema para frente. Em geral, acredito que, quando põe a cabeça no travesseiro, o mercado não confia no real compromisso do governo de perseguir o equilíbrio fiscal. No momento, é mais um acordo de conveniência, minimizando os riscos futuros.
Qual é o saldo final da reforma tributária? Ficou de bom tamanho ou deixou a desejar?
A tributária é uma reforma importante. As mudanças que o Aguinaldo Ribeiro (deputado do PP da Paraíba, relator da reforma na Câmara) fez na Câmara melhoraram o texto e corrigiram boa parte das exceções que foram incluídas no Senado. A reforma, que era nota 5, melhorou um pouco por causa da reversão dessas exceções. Aprovar essa reforma é muito positivo, não há como negar. Ainda vai demorar para que esses efeitos batam na economia, mas é um grande feito do governo. Temos esse problema tributário há pelo menos 30 anos. O governo conseguiu entregar alguns resultados e o grande marco positivo é a reforma tributária. E, na questão relativa, o país ficou mais bem posicionado graças a uma piora externa substancial não apenas dos outros emergentes como dos países avançados. O problema fiscal nos países desenvolvidos voltou para a ordem do dia. Os EUA têm um déficit estrutural enorme.
O mercado projeta uma forte desaceleração do PIB do Brasil no ano que vem, com um crescimento de cerca de 1,5%. Quais serão os principais desafios da economia brasileira em 2024?
O problema do ano que vem será crescer em meio a um cenário externo mais desafiador. Enquanto o mundo empurra para frente, crescer é mais fácil. É o que aconteceu em 2023: pegamos um vento de cauda e o país cresceu, ajudado pelo resto do mundo. Só que em 2024 não haverá essa ajuda, pelo menos não é o que temos no radar em um cenário-base. O cenário mais provável é o de que o ano que vem seja muito mais desafiador em termos de crescimento econômico. Vai ser mais complicado o governo equilibrar todas as demandas sociais e políticas para conseguir manter uma popularidade alta. A desaceleração da economia já está acontecendo. Ela vai continuar em 2024 e isso, sem dúvida, vai bater no desemprego, que vai subir. E vai refletir em popularidade, o que também já começamos a ver. O que ainda está aliviando um pouco esse efeito em popularidade é que os preços dos alimentos e da energia caíram muito, até por causa da supersafra. Esse cenário benigno para inflação de alimentos ajuda muito. A sensação de bem-estar é maior. Para 2024, teremos uma reversão desse movimento. O fenômeno El Niño já está impactando a safra de algumas culturas. Provavelmente, a safra será pior, o que deve entregar uma inflação de alimentos maior no ano que vem. Em 2024, a reboque da desaceleração do PIB, teremos o desemprego aumentando e a inflação de alimentos subindo. Não será uma inflação estupidamente alta, mas uma inflação persistente. Será um ano muito mais complicado. O PIB mais fraco do ano que vem vai afetar o fiscal. Com um crescimento menor, o governo terá menos receita. Se o Haddad realmente quiser cumprir metas ambiciosas de déficit, terá de anunciar novas medidas.