Após deixar a direção da Globo Portugal, Ricardo Pereira voltou às Malvinas, onde atuou como correspondente internacional após a guerra, para gravar um documentário que produziu para o Globoplay e que será lançado em 2024.
Morre o jornalista Ricardo Pereira, aos 72 anos
Os brasileiros que acompanharam o crescimento do jornalismo da Globo ao longo de décadas receberam nesta segunda-feira (11) a notícia da morte de um dos grandes colaboradores dessa história. Morreu o jornalista Ricardo Pereira. Como repórter e correspondente internacional, ele testemunhou fatos marcantes no Brasil e no mundo e, durante anos, compartilhou com o público essas informações. Sempre com clareza e sensibilidade.
Nascido no Rio de Janeiro, foi um cidadão do mundo. Pela TV Globo, viveu e trabalhou no Brasil, no Reino Unido, Itália e Portugal. Estava comandando a sede da Globo em Lisboa desde 2011 e conseguiu unir as culturas dos dois países.
“O Ricardo deixou um time muito bacana aqui em Portugal e, agora, vamos seguir em frente do jeito que a gente gostaria que ele seguisse”, exalta Rodrigo Nascimento, diretor da Globo Portugal.
Ricardo Pereira morreu neste domingo (10), em casa, em Cascais, Região Metropolitana de Lisboa. Ele tratava de um câncer no pâncreas, fígado e estômago.
Ricardo tinha quatro filhos e um neto. Há três meses, deixou a direção da Globo em Portugal, mas seguiu como consultor da empresa e, antes de encerrar a carreira, queria fechar um capítulo aberto da época de correspondente internacional.
Em marco de 1983, Ricardo Pereira esteve nas Malvinas um ano após o fim da guerra entre Argentina e Reino Unido. Na ocasião, o primeiro repórter de TV não britânico a pisar nas ilhas. No caminho, encontrou o diário de um soldado argentino.
“O diário do soldado Sacheto conta que, no dia 30, já a bordo do navio, é que ele ficou sabendo para onde estava indo. Iam voltar às Ilhas Malvinas, iam retomar dos ingleses”, contou ele à época.
Em novembro, Ricardo Pereira voltou às Malvinas na companhia do ex-soldado Adrian Sacheto. Esse encontro é o tema central de um documentário que produziu para o Globoplay nos últimos meses de vida e que será lançado em 2024.
O cinegrafista Newton Quilichini esteve junto nas duas viagens: em 1983 e agora em 2023.
“Para mim foi muito bom, emocionante. Porque eu já tinha trabalhado na Argentina com ele; trabalhei em Londres, no escritório, com ele. Um doce de pessoa, um profissional maravilhoso. Tinha uma visão fora do comum. Aí, na despedida, foi aquela carinha dele, sabe, de agradecimento. Ele falou assim: ‘Muito obrigado’. Eu falei assim: ‘Eu te amo’. Uma figura”, relembra Newton.
“Ele foi atrás desse soldado, desse veterano. Foi à Argentina, conheceu o veterano e eles marcaram de voltar às Malvinas, às Falklands, juntos. E assim eles o fizeram. Esse era o projeto de vida, de resgate da memória do Ricardo Pereira. Certamente a gente vai assistir mais um trabalho fantástico, incrível, memorável do Ricardo Pereira, mesmo depois da partida dele”.
A figura do repórter de televisão
Ricardo Pereira ajudou a estabelecer no Brasil a figura do repórter de televisão com criatividade, presença e a maior qualidade que um jornalista pode ter: texto bom. Gostava de contar história – e sabia contar, todo tipo de história. E em tudo que é canto, até dentro d’água.
As imagens da Copa de 1982, na Espanha, onde Ricardo entrevistou Zico e outros jogadores da Seleção Brasileira dentro da piscina do hotel.
Ricardo começou a carreira fazendo traduções para a imprensa. Entrou para o Jornalismo da TV Globo em 1977, como repórter do Jornal Nacional e do Fantástico. No ano seguinte, recebeu a missão de ir para Brasília acompanhar o processo de abertura política, iniciado pelo presidente Ernesto Geisel.
“Sem dúvida nenhuma foi Ricardo Pereira que me despertou o interesse pelo jornalismo político. Muitas coisas que ele fazia, eu prestava atenção para aprender com ele. Mas ele me ajudou muito, me deu muitos conselhos quando eu estava justamente começando e tinha que lidar com ministros, e aí para mim era muito difícil”, conta Leilane Neubarth.
Ricardo começava ali a ter com mais frequência uma sensação única para quem é repórter: o peso do registro vivo da história. Tudo ficou ainda mais intenso em 1980, quando Ricardo foi transferido para Londres como correspondente internacional. Três anos depois se tornou chefe do escritório.
Quarenta e três anos depois, a geração de correspondentes da qual Rodrigo Carvalho faz parte segue o legado de Ricardo Pereira. Ser repórter fora do Brasil é um trabalho instigante, estimulante, desafiador de fato. Ricardo viveu em Londres essa rotina de descobertas, em cenários que até hoje fazem parte do jornalismo internacional da Globo.
Vivendo em Londres e viajando pelo mundo, Ricardo Pereira participou de trabalhos jornalísticos marcantes, como a cobertura da guerra Irã-Iraque, quando fez uma entrevista que mil em cada mil jornalistas adorariam ter feito: uma exclusiva com o então ditador iraquiano Saddam Hussein.
Ricardo Pereira foi, em uma pergunta atrás da outra, muito direto.
Ricardo Pereira: “O primeiro assunto que nós tratamos com o presidente foi a acusação israelense de que o Iraque estava preparando uma bomba atômica” .
Saddam Hussein: “Se nós estivéssemos realmente fazendo a bomba atômica, nós teríamos anunciado publicamente. Porque nós sabemos, como o Brasil sabe, como o mundo inteiro sabe, que Israel está no processo da construção da sua bomba atômica”.
“O correspondente é o repórter que está longe de casa e parece que quando a gente está longe de casa tem mais coisa para contar, mais notícia para dar. É tentar entender as histórias, as línguas, os lugares, tanta coisa diferente. Tentar entender para tentar explicar e tentar explicar, contar essas histórias na nossa língua, para nossa gente. Eu acho que isso é ser correspondente”, disse Ricardo Pereira ao Memória Globo.
Em 1986, Ricardo mudou-se para a Itália para ser diretor de jornalismo da Telemontecarlo, empresa que na época era associada ao Grupo Globo. Em 2011, foi nomeado diretor da Globo Portugal.
Colegas que trabalharam com ele ao longo das últimas décadas falaram sobre a importância de Ricardo para o jornalismo brasileiro:
Pedro Bassan, jornalista: “Eu queria ser o Ricardo Pereira. O Ricardo é dessa geração que inventou a figura do repórter de televisão no Brasil. Eu acho que ele foi o primeiro jornalista de TV do Brasil a entrar na China. Ele passou lá algumas semanas fazendo uma série de reportagens e ele vestiu o terninho Mao Tse Tung, aquele sem gola. Porque aquele era o uniforme de toda a população chinesa naquele momento, e ele se vestiu igual para poder conversar de igual para igual com os chineses, para sentir a realidade dos chineses. Ele me ensinou isso, a ter humildade diante de uma cultura diferente, de um povo diferente”.
Ilze Scamparini, jornalista: “Uma das qualidades do Ricardo era sua ironia muito cortante. A outra, o texto. Ele era do time que gostava de escrever. Muito charmoso, brincalhão, generoso. Eu o conheci no primeiro Rock in Rio, em 1985, aquele mítico festival”.
Eugênia Moreyra, jornalista: “Nesse Rock in Rio ele fez uma entrevista telepática com a Rita Lee, que ela estava sem voz, e ele pegou o microfone, e fazia ‘Rita’, e passava para ela, e dizia, ela está dizendo que está muito feliz de estar aqui. Eu fiquei fascinada com aquilo”.
Sandra Passarinho, jornalista: “Ele gostava muito de política e era muito entusiasmado pela reportagem. O Brasil estava se abrindo, estávamos saindo do sufoco da ditadura e começando a viver uma outra época. Então, o que pode ser tão bom para um repórter que adora política como uma situação dessas, né?”
Bob Feith, jornalista: “Eu me lembro de uma cobertura belíssima que o Ricardo fez de um grande terremoto na Itália. Ele relatou os fatos, mas ele também conseguiu fazer a gente ver além dos fatos, sem apelação, com honestidade. O sofrimento, as perdas e a dor daquelas pessoas. Eu me lembro que foi difícil a gente assistir às matérias que ele mandou de lá assim, senti os olhos enchendo d’água”.
Silio Boccanera, jornalista: “Uma pessoa generosa e destemida, com uma disposição de correr atrás dos fatos, de ver a ver as coisas de perto para poder reportar. E sempre com uma aceitação muito boa do público. O público gostava. O Ricardo tinha uma simpatia natural, que o público no Brasil admirava muito, e nós também”.
Luís Fernando Silva Pinto, jornalista: “Era o coração do Ricardo que encantava as pessoas. Ele conseguia ver em cada um o melhor de cada um, não importavam os defeitos ou as circunstâncias. Eu me orgulho de ter convivido com o Ricardo”.
Pedro Bial, jornalista: “Ele foi embora muito cedo, mas ele dá esse exemplo de não só paixão pela notícia, mas saber qual é o valor da notícia, que não passa. Quarenta anos depois ainda tem ali conteúdo, verdade, formação, emoção. Eu acho que não se pode deixar coisa melhor para posteridade do que deixa Ricardo Pereira, nosso grande colega, amigo e mestre. É isso”.