“Os trinta milhões de meninos abandonados pelo Brasil”, disse Caetano Veloso, na canção Os Outros Românticos, do álbum Estrangeiro, de 1989. Essa visão de tantos menores desamparados está presente também em obras-primas como o filme Pixote, de Hector Babenco, de 1980, e por óbvio pela dura realidade observável. Sim, havia e ainda há meninos abandonados nas ruas das grandes cidades brasileiras, numa vida brutal, de roubos, uso de drogas, dormir embaixo de marquises, passar frio e fome, e até mesmo morrer em conflitos com policiais ou bandidos.
Mas a afirmação “30 milhões de meninos abandonados pelo Brasil” nunca foi verdadeira. Em 1989, o Brasil tinha cerca de 150 milhões de habitantes. Não havia qualquer pesquisa ou evidência de que um em cada cinco brasileiros fosse uma crianças ou adolescente vivendo nas ruas. Nos dias de hoje poderíamos chamar tal afirmação de “fake news”. Em 2002, o então candidato à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, admitiu, no documentário Entreatos, sobre sua campanha, que esse número tão utilizado pelo seu grupo político para falar das mazelas do Brasil não fazia nenhum sentido.
Após mais de três décadas da canção de Caetano, passamos a repetir outra frase de impacto: “Há 33 milhões de brasileiros passando fome no Brasil”, frente a cerca de 19 milhões apenas dois anos antes. A fonte agora era mais palpável: Tratava-se de um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), a partir de cerca de 12 mil questionários presenciais executadas pelo Instituto Vox Populi (que havia se associado com a CUT, ligada ao PT, para fazer pesquisas eleitorais à época).
Dados divulgados esta semana parecem contradizer o estudo da rede Penssam de piora em condições como a da fome. Segundo o IBGE, o percentual de pessoas em situação de pobreza caiu de 36,7% em 2021 para 31,6% em 2022, enquanto a proporção de pessoas em extrema pobreza caiu de 9,0% para 5,9%, neste período. Em 2022, para o IBGE havia 67,8 milhões de pessoas na pobreza e 12,7 milhões na extrema pobreza. Frente a 2021, esses contingentes recuaram 10,2 milhões e 6,5 milhões de pessoas, respectivamente.
Para se chegar ao número cabalístico de 33,1 milhões do estudo da Penssan, os entrevistados precisavam responder positivamente, entre novembro de 2021 a abril de 2022, em plena pandemia da Covid, a uma pergunta como essa: “Nos últimos três meses, algum/a morador/a de 18 anos ou mais de idade, alguma vez, sentiu fome, mas não comeu, porque não havia dinheiro para comprar comida?”. Ou seja, o que a pesquisa atestou foi a existência de 33,1 milhões de brasileiros estimados, que em pelo menos um dia em três deixou de se alimentar por dificuldades financeiras. O conceito não era exatamente de “fome”, mas de “insegurança alimentar”.
Há muitas divergências para se chegar a números oficiais sobre a fome em um país. A FAO, agência da ONU para questões de alimentação, considera que a metodologia do IBGE é a mais adequada, mas o instituto não divulga dados específicos sobre a questão desde 2018. Em um vácuo de informações, a pesquisa do Penssan, que pode ser considerada séria, acabou tendo consequências políticas e econômicas para o Brasil.
Como diz o dito popular, o diabo mora nos detalhes, já que o estudo em nenhum momento concluiu que havia 33 milhões de pessoas que passavam fome no Brasil. A conclusão, que também é gravíssima, era que num período de 90 dias, cerca de 33 milhões de brasileiros passaram forme por um dia. Algo forte, mas menos impactante.
Personalidades influentes e interessadas transformam as conclusões do estudo em frases mais contundentes como: “Não tem justificativa ter 33 milhões de pessoas passando fome, num país que é o terceiro maior produtor de alimento do mundo. O maior produtor de proteína animal, as pessoas comendo carcaça de frango ou pegando osso em açougue. Qual é a explicação que num país desse uma criança vá dormir sem tomar um copo de leite?”, questionou, por exemplo, o então candidato Lula.
Em pleno fim de pandemia e ano eleitoral, a frase “33 milhões de brasileiros hoje passam fome”, na sua formulação adequada à política (e também ao jornalismo), era incrivelmente vocacionada para ser tatuada na testa de um presidente da República que a todo momento parecia questionar a gravidade da Covid e abertamente se colocou contra alguns dos esforços para controlar a doença, inclusive se opondo à vacinação em massa.
Além disso, mais preocupado em difundir teorias da conspiração sobre urnas eletrônicas e vacinas, Bolsonaro mal reagiu a uma espécie de consenso político que se formou em torno da informação de que um sétimo dos brasileiros estariam passando fome todos os dias. “Então, tem gente que passa fome, passa. Mas não se justifica passar fome porque você pode requerer [Auxílio Brasil]. E, com R$ 20 por dia, eu sei que não é muita coisa, mas dá pra você comprar por exemplo 2 quilos de frango no supermercado”, afirmou, em defesa. Já o ministro da economia Paulo Guedes disse que os dados da pesquisa da Penssan eram “falsos”. Deveriam ter se preocupado mais, porque a conclusão da política era de que Bolsonaro havia feito disparar a fome no Brasil, o que coube bem ao seu figurino de “insensível aos problemas sociais”.
Por causa também das conclusões imprecisas feitas a partir do estudo sobre a fome, o País aprovou medidas emergenciais que, se de um lado de fato ajudam por um período de tempo quem estava na base da pirâmide, por outro geram déficit e dívida que, na prática, irão dificultar que milhões saiam da condição de pobreza.
Créditos: Fabiano Lana para ESTADÃO.