Estamos subestimando o tamanho da ameaça democrática que representa o Enem da lacração. Tem muita gente falando em doutrinação, mas esse é um problema menos grave porque os alunos teriam mesmo de acreditar na pregação. A ameaça de agora é um condicionamento comportamental que independe de convencimento.
A primeira questão é definir o que está sendo avaliado e o que deve ser avaliado pelo Exame Nacional do Ensino Médio. A portaria inicial que o institui, de 1998, é mais um daqueles shakes de justiceiro social que chegam à legislação brasileira. O bom-mocismo deixou conceitos subjetivos e abertos, que não delimitam com precisão quais são as matérias.
Não é algo conteudista, vai para a capacidade de ver e intepretar o mundo, fenômenos, relações sociais e uma série de coisas. Parece bom e, se não fosse uma lei estipulando o que cai numa prova, seria maravilhoso. O Enem não é obrigado a cobrar conteúdo de sala de aula e pode cobrar coisas subjetivas: é a regra.
Ocorre que essa regra acabou dilatada até a gente ter uma prova que mede quem gabarita em Encontro com Fátima. Não precisa ter ido à escola, basta entender de lacração. Verdade seja dita, até para formular o exame parece ter sido esse o critério.
Ouvi gente argumentando que lacração em vestibular sempre existiu e por isso as universidades são esquerdistas. Fingir que tudo é igual impede que a gente defina problemas e encontre soluções. Há algo diferente agora: não é mais necessário que a matéria esteja correta para lacrar. A lacração vale mais do que o conteúdo.
Geralmente víamos questões com viés progressista nas provas, mas elas eram facilmente anuladas se tivessem erros. Qualquer erro de informação ou impossibilidade de ter uma resposta correta e uma única resposta correta geravam nulidade. Agora não mais. É uma mudança importante.
Esta questão, por exemplo, tem uma coleção de erros fáticos e um elenco de respostas impossíveis. Num Enem com lacração, seria anulada. Como temos uma lacração com Enem, não será.
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O termo “mulambo” não surgiu na época da escravatura, e escravatura existia em Angola mesmo antes da chegada dos portugueses. O termo, que vem do quimbundo, significa “farrapo” ou “esfarrapado”. Por isso as mães dizem que você está mulambento quando se veste mal.
Na versão fake news do Enem, fica implícita a existência de engenhos em Angola. Somente os patrões chamavam os outros de mulambo. Não é verdade, a palavra era e é usada por todos os segmentos, sempre com conotação ofensiva. É impossível uma resposta dentro das disponíveis.
Mas, se você olhar bem, sabe qual resposta o examinador quer, a C, condenação do preconceito racial. Aqui é que começamos um condicionamento que solapa a democracia e precisa ser interrompido.
O estudante sabe que, se repetir o que dizem os grupos dominantes, mesmo sem acreditar nisso, ele será recompensado. Aderir à ideologia dominante, ainda que da boca para fora, é bom negócio. Muita gente age assim, mas é especialmente perigoso treinar gerações inteiras, por meio de condicionamento comportamental, a agir de tal maneira.
Em vez de cobrar matérias escolares dos alunos, o acesso à escola mede o quanto eles aderem a determinada ideologia, ou pelo menos a conhecem. Responder o que seu superior espera ouvir é uma opção do covarde, mas ainda é uma opção. A forma como estamos educando as futuras gerações fará com que deixe de ser opção para se tornar obrigação.
A liberdade de expressão é a mãe das demais liberdades e direitos. Estamos ensinando gerações inteiras a abrir mão dela em nome da conveniência. Pior que isso, ensinamos que condicionar sua opinião à dominante é mais importante que aprender e ter méritos. Não há democracia capaz de sobreviver a esse experimento perverso.
Créditos: O Antagonista.