O Congresso impôs derrotas seguidas ao presidente Lula (PT) nas últimas semanas e mostrou que, mesmo depois de o governo ceder, as demandas do centrão por cargos e verbas tendem a continuar.
De acordo com especialistas que participaram de um debate no 47º encontro anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais), esse tipo de pressão incessante do Congresso é o novo normal da política brasileira.
“Mudanças institucionais recentes transformaram a governabilidade no Brasil em algo mais complexo do que já era antes”, afirmou o cientista político Lucio Rennó, professor da UnB (Universidade de Brasília).
Lula que o diga. Em um intervalo de poucas horas, ele entregou o comando da Caixa Econômica Federal a um aliado de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e viu seu indicado para a Defensoria Pública da União ser rejeitado no Senado.
Depois, descobriu que a mudança na Caixa não bastaria para conseguir, na Câmara, os votos necessários à aprovação de projetos de lei cruciais para a pauta econômica do governo.
“O cenário que se coloca é muito mais difícil de ser navegado pelo presidente, e o Congresso se tornou uma arena imprevisível. Não dá para esperar que o governo vai aprovar tudo o que quiser e que suas propostas vão sair ilesas”, disse Rennó.
Para ele, o Executivo agora precisa se preocupar mais em impedir a votação de propostas negativas para seus interesses do que em tocar sua própria agenda.
“A aprovação de projetos depende menos de cargos e verbas do que da congruência de temas. Isso diminui o leque de propostas que o Executivo pode tratar com o Congresso”, disse o professor da UnB.
Pelo menos quatro reformas institucionais explicam essa nova relação entre os Poderes. A primeira diz respeito ao rito de tramitação das medidas provisórias baixadas pela Presidência.
Sucessivas alterações ao longo de mais de duas décadas atenuaram o impacto desse instrumento, de modo que se tornou mais fácil para o Congresso modificar seu conteúdo ou mesmo rejeitá-lo por completo.
A segunda remete às emendas orçamentárias feitas por parlamentares. Se antes elas podiam ser bloqueadas pelo governo, agora elas se tornaram em grande parte obrigatórias e pouco transparentes, o que diminui o poder de barganha do Executivo.
Outra novidade dos últimos anos é a restrição às nomeações para certos postos comissionados, associada à defasagem de salários na máquina federal. Com isso, a oferta de cargos se tornou menos atraente nas negociações.
Por fim, há o aumento no número de partidos, o que dificulta montar uma base aliada. Embora esse processo de fragmentação tenha sido revertido nos últimos anos, a maioria das siglas ainda tem porte médio ou pequeno.
Como cereja do bolo, há um ingrediente extra: o impeachment. “Um Congresso tão pulverizado e independente aumenta os riscos de ser governo. A ameaça de impeachment hoje é muito maior”, afirmou Rennó.
Parte dessas medidas ganhou impulso em meio a escândalos de corrupção, mas elas também corresponderam a desejos antigos dos deputados e senadores, que queriam ter mais poder no arranjo descrito pelo sociólogo Sérgio Abranches como presidencialismo de coalizão.
Em artigo de 1988, Abranches percebeu no sistema brasileiro algo diferente tanto do presidencialismo americano —caracterizado por um jogo entre apenas dois partidos— quanto do parlamentarismo europeu.
Na década de 1990, diferentes intelectuais procuraram mostrar como esse regime funcionaria na prática, e a solução quase sempre passou pelo uso, por parte do Executivo, de ferramentas como as medidas provisórias, as nomeações e o controle do Orçamento.
Segundo a análise de Lucio Rennó, essa organização é que foi posta em xeque; não o presidencialismo de coalizão em si, mas a maneira de gerir a coalizão.
“O poder foi descentralizado e o Legislativo ganhou força, mas a responsabilização do Congresso pelas políticas públicas continua baixa”, afirmou Rennó.
No debate da Anpocs, a cientista política Maria do Socorro Braga, professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), elencou outros fatores por trás dessa nova equação.
Um deles é uma divisão geográfica entre os partidos e, em alguns casos, dentro das próprias agremiações. “Essa clivagem regional é muito importante”, disse ela.
Além disso, afirmou a professora, “hoje a gente está num sistema em que a polarização ideológica se expressa também do ponto de vista do eleitorado, e o político é cada vez mais afetado pela opinião pública”.
Maria do Socorro também argumentou que as mudanças institucionais alteram o comportamento dos parlamentares.
A cláusula de barreira e o fim do financiamento por empresas, por exemplo, concedem mais poder a certos grupos dentro dos partidos e modificam a maneira de fazer campanha —inclusive aumentando a importância das emendas para agradar à base eleitoral.
A antropóloga Isabela Kalil, que fechou a mesa, citou três elementos da reconfiguração do bolsonarismo que dificultam a vida do governo Lula.
O primeiro, disse ela, é a interiorização do bolsonarismo. Dado que o PL tem planos de eleger 1.500 prefeitos no ano que vem, pode-se imaginar como a capilarização entra nos cálculos de políticos dessa sigla.
“O segundo ponto é a bolsonarização do Congresso e das instituições de Estado”, afirmou Isabela, que é coordenadora do Observatório da Extrema Direita.
De acordo com ela, esse processo ocorre não só nas forças de segurança, em setores militares e entre operadores do direito, mas dentro do próprio Legislativo, com a adoção de agendas conservadoras que, por exemplo, desafiam o STF (Supremo Tribunal Federal).
Isabela chamou esse movimento de “bolsonarismo de baixa intensidade” e diz que quem o melhor representa é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), pródigo em declarações voltadas ao público conservador.
Para completar o quadro, a antropóloga destacou as iniciativas parlamentares que têm por objetivo esvaziar direitos previstos na Constituição.
Créditos: Uirá Machado para Folha de S. Paulo.