Se depender da vontade de Lula, o planeta não será o mesmo daqui a três anos e dois meses — principalmente em relação às lideranças globais. Ele, por exemplo, não esconde de ninguém a ambição de se transformar em uma delas, seja conduzindo um acordo de paz ou liderando a discussão sobre meio ambiente. Perseguindo essa meta, em dez meses de governo, o presidente fez um giro pelo mundo. Num ritmo alucinante para alguém com 78 anos, participou da Cúpula dos Brics, na África do Sul, da reunião do G7, no Japão, e, em sua última agenda internacional, em setembro, abriu a Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York — apenas para citar alguns eventos. Nessas ocasiões, o presidente fez discursos versando sobre questões globais, como guerras, fome e a crise climática. Ao lado do presidente Joe Biden, o petista anunciou até uma parceria com os Estados Unidos para melhorar os direitos trabalhistas no século XXI, se empenhou para refazer pontes com nações como a Argentina e restabeleceu relações com ditaduras como Cuba e Venezuela.
A intensidade das viagens presidenciais gerou até uma máxima em Brasília: diante de pendências, ministros, parlamentares e servidores graduados costumam dizer que todo e qualquer problema será resolvido tão logo o presidente voltar do exterior. Mais do que uma brincadeira, é uma constatação. Lula fez 25 viagens internacionais, cruzando 21 países diferentes. Enquanto cumpriu agenda em quatro continentes, deixou em banho-maria assuntos internos de extrema importância, da consolidação da base de apoio no Congresso, da qual depende o avanço da pauta econômica, à indicação de nomes para órgãos federais (leia a reportagem na pág. 50) e até para o Supremo Tribunal Federal (STF). Em seu terceiro mandato, o petista se mostra à vontade no papel de chefe de Estado, mas um tanto cansado, segundo seus próprios aliados, na função de chefe de governo, que demanda energia para lidar com assuntos diversos como a meta fiscal, a crise na segurança pública e a seca no Amazonas. Como quase nada avança sem a chancela de Lula, a solução acaba sendo — como diz a máxima — esperar o presidente voltar para o Brasil.
A prioridade dada até aqui à agenda internacional não surpreende. Ela foi anunciada ainda na campanha eleitoral, como contraponto a Jair Bolsonaro, cuja gestão fez do país um pária internacional e, entre outras caneladas diplomáticas, criou atritos com a China, a maior economia do planeta e a nossa principal parceira comercial. O reconhecimento no exterior sempre foi uma obsessão para o petista, que chegou a ser chamado de “o cara” pelo então presidente americano Barack Obama. Além disso, é uma necessidade, até para reinserir o Brasil no palco como um ator importante em diferentes negociações multilaterais. Ainda no ano passado, após a vitória nas urnas, Lula foi ao Egito participar da Conferência do Clima, onde prometeu zerar o desmatamento até 2030. Bolsonaro, que era o presidente da República, sequer foi convidado ao evento. Foi um dos primeiros passos de um projeto dedicado a melhorar ao mesmo tempo a imagem do país e de Lula, mas que, se não for bem dosado, pode retardar a solução de problemas que afetam o dia a dia da população brasileira.
Lula trabalha para mudar a sua biografia. Depois de passar 580 dias preso, parte da história já foi reescrita com a redenção eleitoral. O capítulo final, no entanto, ainda está sendo construído. O presidente quer ser reconhecido como um líder global em temas como defesa do meio ambiente e da paz e também no combate à fome. Uma espécie de “o cara” multidisciplinar. Alguns aliados dizem até que ele pode pleitear, no futuro, um Prêmio Nobel da Paz. Sonho e sabujice não têm limites. “Lula é um líder hoje que se iguala ao Emmanuel Macron (presidente da França) na defesa do Acordo de Paris (climático), que se iguala ao Papa na defesa da paz e que é o maior líder nessa causa da fome. Nesse vazio do mundo, o Lula é o maior líder do planeta hoje”, afirma Wellington Dias, ministro do Desenvolvimento Social. Um exagero, obviamente, apesar de ser inegável que o petista de fato conseguiu tirar o Brasil do limbo no cenário internacional, mesmo com um festival de declarações atrapalhadas, muitas delas contaminadas por viés ideológico.
Influenciado por uma retórica de palanque, o presidente anunciou soluções simplistas para questões de extrema complexidade. O sequestro de israelenses e estrangeiros pelo grupo extremista Hamas, por exemplo, poderia ser encerrado com uma “ligação telefônica”. Já a sangrenta e prolongada guerra entre a Rússia e a Ucrânia, na qual ele tentou se colocar como um mediador, seria resolvida com a criação de um “clube da paz”, como se o problema fosse solucionado tomando cerveja “até acabar as garrafas”, conforme disse em 2022. Para afagar o russo Vladimir Putin, não hesitou em afirmar que não sabia o que era o Tribunal Penal Internacional, que, com mais de 100 países-membros, entre os quais Reino Unido e França, funciona como uma corte de guerra e de violações contra a humanidade.
Reunião com lideranças: com problemas no Congresso, Lula prometeu aos parlamentares que, no ano que vem, vai intensificar as viagens pelo país (Ricardo Stuckert/PR)
Por sorte, a diplomacia brasileira, um setor de excelência no serviço público, conseguiu conter danos e convencer Lula a modular discursos inicialmente desastrosos. De acordo com o governo brasileiro, as mais de 100 agendas bilaterais de Lula renderam 57 acordos com outros países, além de investimentos que ultrapassam a cifra de 100 bilhões de reais. “Apesar das críticas internas, a importância da presença do presidente nas reuniões de cúpulas internacionais foi muito grande para relançar o Brasil como um protagonista no cenário mundial. O Brasil era alvo de ataques diários contra a política ambiental e a política de mudança de clima. Então, ele teve que desfazer essa imagem, e, para isso, a palavra do presidente é muito importante”, afirma o ex-embaixador Rubens Barbosa, presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior. “Agora, nada explica essa ausência do presidente aqui dentro. Aí é um problema de política interna do governo”, acrescenta Barbosa.
A análise do embaixador aponta na direção correta da necessária busca de equilíbrio. Em meio aos giros internacionais, Lula demorou meses para sacramentar a adesão de PP e Republicanos ao governo e para entregar o comando da Caixa a um aliado do presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira, o que levou o Centrão a obstruir a pauta da Casa e impedir a votação de projetos considerados prioritários pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Os textos só foram aprovados depois que o loteamento do banco foi formalizado. Há meses Lula também deixa correr uma disputa que opõe o próprio Haddad à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e uma penca de ministros — entre eles, Rui Costa, chefe da Casa Civil. Haddad quer zerar a meta de déficit primário no ano que vem, objetivo que até mesmo foi incluído no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias. Seus adversários nesse assunto querem uma meta menos ambiciosa e minam o chefe da equipe econômica nos bastidores.
Lula acompanhou tudo em silêncio até que, na segunda-feira 30, disse ser praticamente impossível alcançar o objetivo traçado por Haddad. O estrago foi tão grande que o presidente, em reunião com líderes partidários, pediu ajuda para a aprovação das propostas defendidas pelo ministro da Fazenda, muitas delas destinadas a aumentar a arrecadação da União e, assim, melhorar a saúde das contas públicas. Esses projetos ficaram um tempão parados porque Lula não se empenhava pessoalmente na articulação política, o que finalmente resolveu fazer. Recuperado de uma cirurgia e mais dedicado aos assuntos internos, ele também, enfim, envolveu o governo federal no debate sobre segurança pública. Na quarta-feira, anunciou operações de Garantia da Lei e da Ordem em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo numa tentativa de combater o crime organizado. A participação do governo federal nesses esforços era reivindicada havia meses por governadores.
Além da cadeira na mais alta Corte do Judiciário, o presidente está atrasado nas indicações, entre outras, para a Procuradoria-Geral da República, comandada interinamente desde o fim de setembro, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que corre o risco de ter suas atividades suspensas por falta de quórum. Na prática, Lula, o chefe de Estado, pode estar atrapalhando Lula, o chefe de governo. O próprio presidente reconheceu isso de forma indireta ao comentar a decisão do Senado de rejeitar a indicação dele para a Defensoria Pública da União. Lula admitiu que esteve ausente e não conversou com os parlamentares, mas justificou seu distanciamento com a cirurgia que fez no quadril no final de setembro, o que o deixou quase um mês sem sair do Palácio da Alvorada. Em razão dessa operação, ficou impedido de fazer qualquer tipo de viagem até o final de novembro. Assim, debruçou-se sobre as questões internas, exatamente como espera a população, incomodada com as viagens do presidente ao exterior.
Pesquisa divulgada pela Quaest mostra que para 60% dos entrevistados o presidente se dedica mais do que devia à agenda internacional. Essa avaliação é compartilhada inclusive por 54% dos eleitores que votaram no petista no segundo turno da eleição passada. Enquanto uma considerável parcela da população (88%) tomou conhecimento sobre as chuvas e enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul, apenas 41% souberam do acordo firmado entre Lula e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na ONU, em evento que aconteceu justamente em meio ao desastre gaúcho. Lula não foi ao estado e, após críticas a sua ausência, enviou a primeira-dama Janja de última hora ao local. Neste ano, o presidente tem pelo menos mais três viagens internacionais: vai à Conferência do Clima em Dubai, no início de dezembro, com uma passagem, antes, pela Arábia Saudita. Também está programada uma ida para a Alemanha. Assim, deve encerrar 2023 com um giro em 23 países, número maior do que os dezesseis estados brasileiros visitados pelo presidente até agora, muitos deles em aparições-relâmpago.
Ciente das queixas e do imenso rosário de problemas domésticos, o presidente promete aumentar a presença em solo nacional no ano que vem. Espera-se que para cuidar dos problemas do país, e não apenas para turbinar as campanhas de PT e aliados de esquerda nas eleições municipais. “Agora, a partir de 2024, é viajar o Brasil, é conversar com o povo, é fazer investimento na educação, no ensino médio, na saúde, na geração de emprego, na cultura.” Que assim seja. Poucos países estão tão bem posicionados no mundo pós-pandemia quanto o Brasil, inclusive nas áreas da economia e do meio ambiente. As oportunidades e os desafios, porém, são enormes. Para dar conta deles, Lula, antes de pleitear o status de protagonista global, tem de cumprir a missão reservada pelas urnas: a de liderar todos os brasileiros.
Créditos: VEJA.