A busca das milícias do Rio de Janeiro por novas formas de renda e ampliação de poder levou os grupos a mirarem o controle do setor imobiliário nas regiões dominadas. Os criminosos usam de violência e ameaça para expulsar moradores de suas casas e tomar posse dos seus terrenos. As informações são da Folha de SP.
Em geral, os milicianos erguem novas construções, que então são vendidas ou alugadas, gerando dinheiro para a quadrilha. Investigações da polícia apontam que a prática é corriqueira.
Uma mulher moradora da zona oeste do Rio foi uma das vítimas. Ela foi obrigada a deixar a casa em que morava havia 40 anos com o marido.
A vítima contou ter sido ameaçada por milicianos em outubro do ano passado. “Eles disseram para chamar quem quer que fosse, de nada iria adiantar”, disse à polícia, segundo o boletim de ocorrência. Por temer retaliações, ela pediu para não ter seu nome divulgado.
Segundo o registro, ela foi procurada pelo dono de um comércio localizado em uma favela ao lado do bairro onde morava. Esse homem teria dito que seu marido havia doado o terreno e a casa. Ela disse que a história não era verdade, já que seu marido está doente e não doaria seu único bem.
Após se recusar a deixar o local, o casal foi surpreendido por pedreiros, que passaram a realizar obras no terreno. O caso foi registrado como esbulho possessório —quando alguém toma posse de uma propriedade de forma ilegal.
As obras continuaram e, atualmente, ela tenta reaver o terreno na Justiça. O caso foi encaminhado à Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), que investiga a ação dos grupos.
Conforme a Folha mostrou, as milícias atuam em mais de 800 áreas da região metropolitana do Rio, principalmente na zona oeste e na Baixada Fluminense.
“O crime de esbulho possessório é configurado quando alguém invade, com violência ou grave ameaça, imóvel ou terreno alheio”, afirmou o advogado criminalista Reinaldo de Almeida.
“O processo e julgamento é de competência do Jecrim [Juizado Especial Criminal], por se tratar de um crime de menor potencial ofensivo, com pena de um a seis meses”, disse.
Segundo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, nos últimos cinco anos foram levados a audiências 468 casos de esbulho possessório no estado. O Jecrim da Barra da Tijuca, zona oeste, é o que mais teve casos no período, com 91 julgamentos. O tribunal concentra bairros com presença de milícia, como Barra de Guaratiba, Carmorim, Vargem Grande, Grumari, Vargem Pequena e Recreio dos Bandeirantes.
Áreas de milícia lideram também os registros do crime nas delegacias, de acordo com levantamento solicitado pela Folha ao ISP (Instituto de Segurança Pública) via Lei de Acesso a Informação. De janeiro de 2019 a dezembro de 2022 foram 430 casos. Na cidade do Rio, os bairros que mais têm casos são Recreio dos Bandeirantes, Pedra de Guaratiba, Campo Grande, Taquara — todos na zona oeste e com presença desses grupos.
Na mesma região, há relatos de terrenos que foram invadidos e loteados por milicianos —os criminosos chegaram a anunciar na internet o espaço por R$ 20 mil.
Em outro caso, um morador de Sepetiba (também na zona oeste) encontrou sua casa recém-comprada trancada com um cadeado. Ele disse aos policiais que um vizinho ligado à milícia foi o responsável por bloquear a entrada. Com medo de sofrer retaliações, o proprietário foi embora e nunca mais voltou ao local.
Ponte caída no rio Guandu, trecho do bairro Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro. Milicianos são suspeitos de tentarem levar ferro para ser usado em construções – Eduardo Anizelli/Folhapress
De acordo com a polícia, a presença das milícias no setor imobiliário não se resume a invasões e ameaças a moradores. Investigações mostram, por exemplo, que trilhos de trem têm sido roubados pelos criminosos, que usam o material nas obras irregulares.
A Supervia, concessionária que administra os trens, afirma que fez registros dos roubos.
Em agosto, homens suspeitos de ligação com uma milícia tentaram roubar uma ponte de um ramal desativado de trens em Santa Cruz, na zona oeste.
A ação deu errado porque o grupo não calculou corretamente o peso do equipamento. Após a ponte ser derrubada, ela foi amarrada em um caminhão, que deveria puxá-la para fora do rio. Mas aconteceu o contrário, o veículo acabou caindo dentro da água.
“Foi um barulhão de madrugada. Depois, vimos a ponte e o caminhão dentro da água, ajudamos no socorro”, disse um pescador que mora próximo ao local. Ele pediu para não ser identificado por questões de segurança.
Sem a ponte, que até agora está atravessada no rio, uma comunidade perto ficou isolada.
“Chegamos a ficar sem pescar por uma semana, até conseguir dar a volta com os barcos pela mata. Mas ainda atrapalha muito pois não conseguimos cruzar o rio com facilidade”, afirmou outro pescador à reportagem.
Folha de SP