Demitido no último dia 11 de um cargo comissionado da Câmara dos Deputadospor zombar de uma mulher israelense sequestrada pelo Hamas, o militante do PCdoB Sayid Marcos Tenório construiu uma longa e discreta atuação no Congresso a favor dos interesses do Irã e do Hezbollah, grupo paramilitar criado no Líbano e financiado pelo regime xiita de Teerã, através de uma rede de contatos controversa.
Nos últimos 13 anos, ele ocupou diversos cargos na Câmara e no governo federal. Ao longo da década passada, assessorou pelo menos seis parlamentares, cinco dos quais filiados ao PCdoB, e também exerceu cargos no Palácio do Planalto e no Ministério dos Esportes no Governo Dilma Rousseff.
Neste período, Tenório facilitou o acesso de autoridades do Irã ao Congresso brasileiro e promoveu encontros entre políticos e lideranças ligadas ao Hezbollah, com quem manteve relações próximas.
Ele, no entanto, nega ter feito lobby a partir dos cargos que ocupou e diz não ter recebido valores ou vantagens pela aproximação entre os países. Tenório, que é muçulmano xiita, diz que promoveu encontros com altas lideranças do Irã em razão de sua fé.
Até o último dia 11, Sayid Tenório, que também é historiador, ocupava um cargo na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara por indicação do deputado federal Márcio Jerry(PCdoB-MA).
Mas foi demitido depois comentar a postagem de um perfil no Twitter que reproduziu o vídeo de uma mulher sequestrada pelo Hamas durante os ataques terroristas e levantou a hipótese de estupro.
“Isso é marca de merda. [Ela] Se achou nas calças”, respondeu, debochando da mancha escura que a mulher trazia na roupa.
Com a péssima repercussão do comentário, ele chegou a desativar brevemente suas redes sociais, mas retornou à internet poucos dias depois com uma nova identidade – @soupalestina – , retomando também os ataques a Israel e elogios ao Hamas.
O jornalista Leonardo Coutinho, autor de “Hugo Chávez, O Espectro: Como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global”, publicado pela editora Vestígio, investigou a atuação de agentes iranianos e membros do Hezbollah na América do Sul e mapeou o lobby de Tenório a favor deles no Congresso brasileiro.
O Hezbollah surgiu como uma milícia xiita na invasão do Líbano por Israel em 1982. Após a retirada dos israelenses do território libanês, em 2000, o grupo se transformou em partido, mas manteve um braço armado fortemente financiado pelo Irã, que é classificado como terrorista pelos Estados Unidos e pela União Europeia e defende o fim do Estado de Israel, assim como o Hamas.
Em 2015, quando estava lotado no gabinete de Wadson Ribeiro (PCdoB), Sayid Tenório articulou a recriação do Grupo Parlamentar Brasil-Irã na Câmara dos Deputados, que estava desativado.
No mesmo ano, promoveu um encontro do então embaixador iraniano em Brasília, Mohammad Ali Ghanezadeh, com a presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, a colega de partido Jô Moraes (MG).
Tenório reuniu ainda em 2015 lideranças do PCdoB, entre elas o deputado Orlando Silva(PCdoB), com Bilal Mohsen Wehbe, sheik de uma mesquita em São Paulo de origem libanesa e naturalizado brasileiro. Wehbe é alvo de sanções dos Estados Unidos desde 2010 pelos seus vínculos com o Hezbollah e apontado pelas autoridades americanas como o representante do grupo na América do Sul sob o comando de Hassan Nasrallah, chefe da organização.
O historiador alegou que a diretoria da mesquita do Brás, em São Paulo, decidiu homenagear o então chefe, o deputado Wadson Ribeiro, pela organização de uma sessão solene da Câmara dedicada à comunidade muçulmana, mas que a presença de Wehbe não estava prevista e não passou de uma coincidência.
Tenório afirmou ainda que não tinha conhecimento das sanções dos EUA e que “desconhecia” qualquer vínculo dele com o Hezbollah.
A versão do encontro foi corroborada por Orlando Silva. O deputado ressaltou ter boa relação tanto com a comunidade judaica quanto a palestina e declarou saber se tratar apenas de um líder religioso.
“Não acompanho o Departamento do Tesouro americano nem me alinho aos Estados Unidos na sua política internacional, por unilateral e belicista”, alegou.
À equipe do blog, Tenório declarou que não atuou como lobista de interesses estrangeiros.
“Meu objetivo era promover as relações entre o Brasil e o Irã. Eu não exerci nenhuma atividade remunerada por nenhum meio e nem obtive nenhuma vantagem”, disse. “Tudo que fiz foi dentro da inteira legalidade, desde o trabalho que exerci na Câmara até minha relação com iranianos e pessoas de outras nacionalidades que eventualmente tenha encontrado. Foram encontros públicos”.
Procurado, o deputado Márcio Jerry, o último a empregá-lo na Câmara, afirmou desconhecer a natureza da proximidade de Tenório com o Irã enquanto militante e declarou que as relações entre o Brasil e o país nunca foram tema de seu gabinete.
Durante a turbulência política provocada pela Operação Lava-Jato e o impeachment de Dilma Rousseff, o grupo Brasil-Irã, que Tenório tinha retomado em 2015, acabou sendo desativado de novo.
Em 2017, mais uma vez entrou em ação para retomá-lo. Nas redes sociais, ele se apresentava como “secretário-executivo” do grupo, hoje novamente inativo.
A proximidade de Tenório com os iranianos é exaltada abertamente em seus perfis na internet. No dia 24 de agosto, ele celebrou a aprovação do ingresso do Irã no grupo dos Brics com fotos ao lado do atual presidente do país, Ebrahim Raisi, em Teerã, durante um encontro mundial de muçulmanos xiitas na chamada Assembleia Mundial Ahlul Bait.
O militante do PCdoB também publicou fotos ao lado do sheik Seyyed Hassan Khomeini, neto do primeiro aiatolá do país e mentor da Revolução Iraniana, Ruhollah Khomeini, morto em 1989.
Em 2017, ainda, Tenório recepcionou em São Paulo o aiatolá Mohsen Araki, um dos clérigos mais próximos do líder supremo do Irã, Ali Khamenei, e considerado um dos mais radicais do regime.
Mais recentemente, Araki defendeu pena de morte para os manifestantes iranianos que foram às ruas em 2022 protestar contra o assassinato de uma mulher que estava sob custódia da polícia por desrespeitar o padrão de vestimenta exigido às mulheres pelo governo.
Três dias após a invasão às sedes dos Três Poderes, o ex-assessor da Câmara chegou a comparar os protestos por democracia no Irã aos ataques golpistas do 8 de janeiro. Em uma série de publicações sob o mote “Terrorismo e extremismo: igual em todos os lugares”, debochou da mobilização dos iranianos e comparou à punição dos bolsonaristas com a dura repressão iraniana que resultou em quase 200 mortes.
Questionado sobre a comparação, Tenório respondeu que os dois grupos “tinham o mesmo objetivo de desestabilizar o regime vigente e democraticamente eleito”.
“Pelo o que acompanhei não houve aquilo que a mídia ocidental relatou sobre a mulher que morreu. Isso foi utilizado como pretexto por forças externas que atuam dentro do Irã e na fronteira do país para criar uma situação de convulsão popular”, despistou.
Conexões nebulosas
Em seu livro, Leonardo Coutinho cita ainda a amizade de Tenório com Khalil Karam, libanês radicado no Brasil que foi preso e condenado no país nos anos 90 por envolvimento com o tráfico de cocaína e também foi investigado pelo crime na Itália, mas nunca foi extraditado por ter se naturalizado brasileiro. O dinheiro, segundo a obra, era em parte desviado para grupos radicais como a Frente Para a Libertação da Palestina, também classificada como terrorista pelos EUA.
Anos depois, em 2004, foi implicado pela Polícia Federal como intermediário do comércio de diamantes extraídos de uma reserva em Rondônia operado em um esquema similar ao utilizado pelo Hezbollah na África para lavar produtos ilegais. Ainda segundo a PF, Karam mantinha boas relações com o governo brasileiro nesse mesmo período.
Segundo Coutinho, o filho de Tenório atuou como advogado de Karam, o que o historiador confirmou à equipe do blog. “Era uma causa muito específica, corriqueira, nem me lembro o que era”.
O historiador afirmou que não tinha conhecimento da condenação e da prisão por Karam, mas também classificou o libanês como “um irmão de coração”.
“É um delírio fazer essa conexão da vida pretérita dele comigo. Conheci Kalil em 2007 ou 2008 e nunca soube que ele tinha negócios com diamantes. Não acredito na narrativa da PF. E pelo o que eu entendo dos grupos palestinos, ele não tem o menor perfil de ter essa responsabilidade. Ainda mais sendo um libanês de família cristã”, argumentou Tenório.
Ainda segundo o ex-assessor da Câmara, os dois ainda mantêm contato. A última conversa teria acontecido em 2022, quando o amigo teria atendido uma ligação enquanto trabalhava em Dubai.
“Trato ele por irmão de coração. Ele andou doente. Acho que liguei para perguntar como ele está. Isso foi antes da eleição do presidente Lula”, disse.
Mas a intrincada teia de relações do brasileiro com pessoas investigadas por conexões com o extremismo vai além.
Na foto de Sayid Tenório com o atual presidente do Irã, o militante comunista aparece ao lado de Nasser Khazraji, intérprete da Embaixada do Irã no Brasil e filho de Taleb Hussein al-Khazraji, sheik radicado em São Paulo apontado pela Interpol como um agente iraniano no Brasil que teria hospedado o clérigo Mohsen Rabbani durante suas passagens pelo país nos anos 80.
Rabbani, por sua vez, é apontado pela Justiça da Argentina junto de outras lideranças do Hezbollah como um dos autores do atentado a bomba contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que matou 85 pessoas em Buenos Aires em 1994.
Outro extremista que passou pela casa de al-Khazraji no Brasil é o guianense Abdul Kadir, condenado à prisão perpétua nos Estados Unidos em 2010 por planejar um atentado contra o Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova York, e apontado pelos EUA como “discípulo” de Rabbani. Ele morreu na prisão em 2018.
Sobre a viagem com a Teerã com Nasser al-Khazraji, Tenório admitiu que eles foram os dois únicos representantes do Brasil na Assembleia Mundial Ahlul Bait entre 200 participantes do mundo inteiro – o que dá a dimensão de sua importância para a comunidade iraniana no Brasil.
“Minha acolhida por parte dos iranianos é até por uma questão específica, que é a minha militância palestina. O Irã é um dos maiores defensores dos palestinos”, justificou Sayid Tenório. “O presidente Raisi foi cumprimentar os participantes em determinado momento. Fui lá apertar as mãos dele. Ele não sabe meu nome, nem sabe que existo, mas me apresentei com a ajuda do Nasser”.
Sobre o patriarca al-Khazraji, seu envolvimento com o Hezbollah e a hospedagem de Rabbani e Kadir, o historiador disse “colocar na conta da religião”.
“O sheik al-Khazraji é um grande sábio islâmico e é muito respeitado no mundo inteiro. Tem muitas obras importantes e traduziu outras tão relevantes quanto. Eu acredito que essas visitas tenham a conotação do fortalecimento dos Centros Islâmicos do Brasil”.
“Nunca presenciei uma conversa que fugiu disso. Aliás, pessoalmente nem acredito que o sheik Rabbani esteja envolvido no atentado da Amia. Mas não externarei os motivos porque não tenho elementos para comprovar”, disse, em tom misterioso.
Redes sociais
Nascido José Marcos Tenório, o militante comunista se converteu ao islamismo e adotou oficialmente o nome Sayid, comum em países árabes e que tem origem no título honorífico concedido aos descendentes do profeta Maomé.
Nas redes sociais, no entanto, Tenório nunca hesitou em celebrar a violência.
“Nada que a resistência palestina vem fazendo foi (sic) sem motivo”, escreveu no Facebook dois dias após os ataques sem precedentes do Hamas contra Israel.
Em março de 2022, compartilhou um comunicado do próprio Hezbollah exaltando um ataque “da resistência palestina” em Hadera, Israel, que matou dois policiais.
Um mês depois fez coro a uma declaração de Raisi, o presidente iraniano, que antecipava o conflito entre o Hamas e Israel ao ressaltar que o destino da Palestina “não seria decidido nas mesas de negociação”, mas estaria “nas mãos dos combatentes palestinos”.
Sayid Tenório, porém, afirma que os ataques não passam de uma resposta do Hamas a décadas de opressão pelo Estado de Israel. Ele classifica o grupo como um “movimento de resistência”, assim como a Jihad Islâmica e a Frente Para a Libertação da Palestina.
“Terrorista é o Estado Islâmico, o Boko Haram”, costuma dizer em resposta às críticas.
Tenório é também vice-presidente do Instituto Brasil-Palestina (Ibraspal), uma entidade criada no país com o intuito de estreitar relações com o povo palestino. O presidente da instituição, Ahmed Shehada, é de origem palestina e repetiu a zombaria de Sayid Tenório em referência à foto de uma soldado israelense que também foi mantida refém com uma mancha nas calças.
“Espero que ninguém vá falar que essa foi estuprada”, escreveu no Facebook.
Ao menos até aqui, as publicações extremistas de Sayid Tenório – todas públicas e numerosas – passavam despercebidas ou eram relativizadas em Brasília. Nas redes, ele mantém fartos registros com autoridades e políticos com mandato, como o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP), o senador Omar Aziz (PSD-AM) e o vice-líder do governo na Câmara Alencar Santana (PT-SP).
Segundo fontes próximas a Tenório relataram à equipe do blog, sua passagem por diferentes gabinetes da Câmara ao longo de mais de 30 anos lhe garantiu acesso privilegiado a parlamentares progressistas.
Durante uma live do blog Diário do Centro do Mundo na última quinta-feira, o ex-assessor admitiu considerar que “não foi levado em consideração” e foi “pouco prestigiado” pelos aliados em meio à polêmica. Para ele, o governo, seus ministros e os parlamentares do PCdoB ficaram “acuados” diante da pressão de “bolsonaristas e sionistas”, além do que chamou de “movimentos identitaristas”, e “não reagiram à altura”.
Agora que a guerra no Oriente Médio se tornou um ponto de desgaste para o governo Lula e a esquerda, a exemplo da demissão do presidente da EBC, Hélio Doyle, por comentários críticos a Israel, ninguém quer ver o velho colega por perto.
O Globo