O mercado brasileiro vive um período de queda nos preços da carne bovina devido a um fenômeno conhecido pelos técnicos como ciclo pecuário. A oferta maior de boi gordo, que Lula e o PT trombeteiam como uma “promessa de campanha cumprida”, não tem qualquer relação com ações do atual governo. Trata-se principalmente, dentre outros motivos, de resultado da ampliação dos rebanhos feita pelos pecuaristas há dois ou três anos, quando os preços da carne estavam em alta e uma nova administração petista ainda era apenas uma hipótese remota.
O ciclo atual, de aumento de oferta, coincide com redução dos preços pagos pelo boi-China (animal mais jovem) e com milho mais barato devido à safra histórica de 130 milhões de toneladas. Recebendo menos por arroba, os criadores temem entrar no vermelho e acabam se desfazendo de matrizes (fêmeas), o que resulta em ainda mais carne lançada no mercado.
Diferentes projeções do IBGE, do banco Santander Brasil e da LCA Consultores apontam que 2023 deve fechar com deflação dos preços da carne entre 10% e 11,35%. Seria a maior queda desde o início do Plano Real, em 1994. Uma tendência de mudança de ciclo pecuário que os petistas logo trataram de relacionar às promessas de campanha de Lula, que, em agosto de 2022, em entrevista ao Jornal Nacional,afirmou: “O povo tem que voltar a comer um churrasquinho, a comer uma picanha e tomar uma cervejinha”.
Petistas tentam capitalizar em cima da oscilação do mercado
Diante da deflação da proteína animal, o site do PT reproduz um tuíte do ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Paulo Pimenta: “Lula prometeu e cumpriu (…) Prepara a brasa que o preço da carne despencou e vai cair mais!”. Outro que buscou faturar em cima dos preços do filé foi o deputado Rogério Correia (PT-MG), que também postou: “Lembra durante a campanha quando Lula dizia que o preço da carne ia cair? Pois é, ele cumpriu e prometeu”.
Ministro de Lula atribui ao governo baixa de preço da carne que tem a ver com o ciclo pecuário| Reprodução Redes Sociais / X
Os petistas, assim, tentam faturar em cima do que não construíram, e nem sequer contribuíram para o resultado. “Foi uma grande sorte deles, pegaram o governo com esse discurso da picanha e com o ciclo pecuário ajustando para baixo. Seria especulação dizer que o Lula tinha conhecimento do ciclo pecuário, acho que foi um discurso populista mesmo (de carne mais barata), de prometer sem medir qualquer consequência”, avalia Lygia Pimentel, analista-chefe da consultoria Agrifatto (SP). Lygia, que é economista e médica veterinária, lembra que a mesma retórica foi utilizada pelo presidente Alberto Fernandez, na Argentina, que prometeu baixar o preço da carne, mas se deu mal porque por lá o ciclo pecuário estava em viés de alta de preços.
A redução do preço da carne neste ano no Brasil é insuficiente para trazer os preços a patamares anteriores a 2019. Somente naquele ano, a carne teve alta de 32,4%, pressionando o índice da inflação medido pelo IPCA. Depois, durante a pandemia, a pressão nos custos de produção levou a uma alta acumulada de 42,6%, entre março de 2020 e abril de 2021, o dobro da inflação geral no período, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Bezerro inseminado em 2021 está aparecendo agora
Para entender o ciclo atual da pecuária também é preciso olhar no retrovisor. Em 2018 e 2019 houve um alto índice de abate de matrizes no país. Em consequência, a oferta de boi foi diminuindo e o preço subiu. A chegada da pandemia elevou os custos de produção e fez as cotações dispararem. “Os produtores começaram então a investir mais em inseminação, tecnologia, nutrição e sanidade. 2021 foi o ano que a gente mais inseminou. É o bezerro que está aparecendo agora, em 2023. Agora é o ciclo de mais oferta, porque, com preços menores, os produtores também estão abatendo mais fêmeas”, explica Thiago Bernardino, coordenador técnico da área de pecuária do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-Esalq/USP).
Na realidade brasileira, em que ainda existe uma parcela significativa de pecuaristas pouco profissionalizados, a gangorra de preços atrelada aos ciclos da pecuária é intensa. Atualmente, segundo a Agrifatto, o preço do boi caiu cerca de 30% do pico de alta em 2022. Com a renda comprometida, o criador menos eficiente se sente desestimulado. “Além disso, ele fica incapacitado de investir, e muitas vezes precisa liquidar o rebanho para fazer caixa. Então ele está desanimado, acha que a situação nunca mais vai mudar, que a pecuária não dá mais dinheiro. E como precisa pagar as contas, ele liquida rebanho. E lá na frente a gente vai sentir o efeito oposto dessa fase de desinvestimento. Isso tudo tem reflexos de prazo longo”, argumenta Lygia Pimentel.
Se a carne foi um dos itens que mais pesaram para a inflação dos alimentos no período da pandemia, agora, com aumento da oferta, o ciclo pecuário entrou em viés de baixa e a tendência se inverte. “Há boas chances de terminar a inflação abaixo da meta, abaixo do teto de 4,75%. Quando procuramos as razões, vemos que os alimentos tiveram esse comportamento atípico. Devolveram parte do aumento que tiveram nos últimos anos e a carne, na verdade todas as proteínas animais, tiveram um papel importante na desaceleração da inflação”, destaca André Braz, coordenador dos Índices de Preços do Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre).
Produção de gado no país tem oscilações fortes, conforme ciclos de alto e baixa na demanda| Wenderson Araujo / CNA
Carne será “mocinha” da inflação neste ano
A retração nos últimos meses das cotações de commodities como milho e soja, ingredientes básicos da ração de bovinos, frangos e suínos, também teria contribuído para que a cadeia produtiva não ficasse pressionada a repassar custos. “Esperar que o preço da carne retorne aos patamares de 2019 não é real. Ainda tem, sim, uma gordura de preços no período em que ela subiu muito, então, para os padrões atuais, ela está realmente mais barata. Ela vai ser a mocinha da inflação neste ano, não vai ser vilã”, afirma Braz.
Mudanças de cenário, em função do ciclo pecuário, levam anos para ocorrer. A tentativa dos petistas de capitalizar em cima do recuo do preço da carne, assim, é oportunismo. “O boi que está sendo abatido hoje nasceu há 30 ou 36 meses atrás. Não é possível em dez meses fazer a produção de boi aumentar no Brasil, a não ser que o governo tivesse limitado as exportações, mas não foi o caso”, argumenta Pimentel, da Agrifatto. E quando os governos tentam intervir nas exportações, como ocorreu na Argentina, em que o regime peronista proibiu os embarques de determinados cortes, o efeito foi ainda pior, já que desestimulou os criadores a investir na atividade, levando à retração nos volumes produzidos.
A projeção da consultoria Agrifatto é de que o atual ciclo pecuário, de excesso de oferta, siga ainda no ano que vem, começando a mudar de sinal entre 2025 e 2026. “Você tem que acumular fêmeas produzindo para conseguir um efeito, ou tem que liquidar de maneira coletiva e persistente essas fêmeas para ter um efeito. Tem que ser uma coisa contínua, abater fêmeas em 2022, 2023, 2024 e de repente tá faltando muito boi, porque foi uma coisa cumulativa. A gente teve fase de alta de ciclo pecuário em 2020 e 2022. Só devemos ter um efeito semelhante em 2026”, diz Lygia Pimentel.
Carne vermelha tem disputa acirrada com frango e suíno
Na disputa da preferência do consumidor com outras carnes, a bovina tem a desvantagem de ser tradicionalmente a mais cara. A abundância de milho neste ano, observa Thiago Bernardino, do Cepea, barateou a produção das carnes suína e de frango, acirrando a concorrência no mercado interno e aumentando a pressão sobre a carne bovina.
Por outro lado, o turbulento cenário econômico global, com inflação e juros mais altos, contribuiu também para derrubar o preço das carnes no Brasil. Bernardino observa que a China reduziu os valores pagos pela arroba desde julho-agosto do ano passado. “Eles fizeram um ajuste de preço, basicamente devido à crise internacional. O país também não vem crescendo como vinha nos últimos anos, mas segue dependendo do consumo de carne”, sublinha.
Ironicamente, o mesmo governo petista que comemora agora a baixa do preço da carne, sem ter contribuído para isso, poderá enfrentar em 2026, ano de eleição presidencial, uma situação oposta: bife mais caro, pressionado pelo ciclo pecuário de alta. Se isso se confirmar, o assunto “picanha”, festejado agora, poderá virar uma pedra no sapato da campanha eleitoral petista.
Gazeta do Povo