Mentiras, extorsão, exploração sexual, violência. Se os métodos adotados pelos criminosos descobertos na última quarta-feira mantendo cinco mulheres brasileiras em cárcere privado num apartamento na cidade portuária de Alicante, na Espanha, chocam pelas condições subumanas às quais aquelas vítimas eram submetidas diariamente, também trazem luz sobre como têm agido essas quadrilhas especializadas em tráfico humano para fins de prostituição, sobretudo na Europa. É o que explica Waldimeiry Correa, brasileira reconhecida internacionalmente como uma das mais respeitadas pesquisadoras sobre o tema, professora de Direito Internacional e Relações Internacionais da Universidade de Sevilha e que há anos se dedica a investigar as redes obscuras por trás deste tipo de crime. As informações são de O Globo.
Correa vive na Espanha, país que é apontado pelo Conselho Nacional de Justiça como principal destino de brasileiros traficados (56,94% casos), de acordo com último relatório, de 2021. Ela é autora do livro “Regime Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas” e vinculada ao Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo Contemporâneo da UFRJ. Ela revela a rotina à qual várias destas vítimas contam ter sido submetidas nos últimos anos. São relatos de pessoas aprisionadas que afirmam que eram obrigadas a fazer de 12 a 20 programas por dia para conseguirem arcar com dívidas “impagáveis” criadas pelos criminosos.
O que se sabe sobre as mulheres exploradas em Alicante?
Pelo que pude apurar, trata-se de uma organização formada por cinco pessoas, das quais duas eram mulheres brasileiras. Isso é algo que tem se tornado muito comum nos casos de tráfico de pessoas: na maioria das vezes, as pessoas encarregadas pelo aliciamento são ex-vítimas. Pessoas que passaram por todo aquele processo, mas acabam seduzidas por novas promessas e ficam encarregadas de cooptar mais gente. Essa ex-vítima volta para a sua cidade de origem ostentando nas redes sociais uma falsa vida boa e cria um gancho atrativo. Se no passado usavam a figura do “love boy”, o espanhol bonitão com dinheiro que fingia se apaixonar para levar a vítima para fora do país, agora predomina a figura da migrante que teve êxito no exterior.
Quais são as estratégias usadas para aprisionar as vítimas?
Elas são enganadas e, geralmente, já chegam com uma dívida inicial de 5 a 10 mil euros imposta pelos criminosos, que envolve compra de passagem aérea superfaturada, reservas falsas em hotéis e até documentos adulterados, já que muitas ainda são menores de idade. Essa dívida é cobrada no dia a dia e nunca é abatida. Há também ameaça constante. Uma das mais comuns é a de revelar no entorno social dessas vítimas que elas estão se prostituindo, o que gera o temor de se criar um estigma. Elas têm que estar disponíveis 24h por dia para os programas e há câmeras que as vigiam. Não podem recusar clientes ou as condições exigidas por eles, e o contato com o mundo exterior é totalmente controlado. Em casos de desobediência, são submetidas a castigos físicos, que vão desde agressões à violência sexual. Os relatos mostram que as máfias se sentem no direito de violar essas mulheres quando elas rejeitam clientes.
Como agia essa quadrilha descoberta em Alicante?
Estas brasileiras estavam em um “piso”, que é como chamamos estes apartamentos. Isso significa que provavelmente atendiam a um público sob demanda, atraído por anúncios em jornais e páginas na internet. A ordem dos criminosos nesses casos é: “quando conseguirmos clientes, vocês têm que estar disponíveis”.
Como é o dia a dia de quem está preso a essas redes na Espanha?
Muitas vítimas relatam que precisavam fazer entre 12 a 20 programas por dia. Já as mantidas em bordéis contam que eram obrigadas a fazer de 15 a 20. São programas que costumam durar de 10 a 30 minutos cada e custam em média 50 euros. O dinheiro é quase todo repassado aos criminosos para pagamento da tal dívida, além de valores cobrados por eles por moradia, alimentação, limpeza dos quartos e até pelos preservativos usados. São pessoas totalmente violadas física e psiquicamente. Em muitos casos, as câmeras as vigiam até quando estão com os clientes. São feitos vídeos de pornografia amadora sem consentimento, e os materiais são vendidos através da deep web.
Elas passam o tempo todo num só lugar?
Geralmente elas ficam 28 dias num local, recorte que coincide com o período menstrual, e depois vão sendo transladadas o tempo todo. As máfias têm muitos locais de exploração, até porque há essa demanda de clientes que querem sempre um “produto fresco”, ou seja, exigem que as opções sejam renovadas. Imagine só a cabeça dessas pessoas, sem noção de geolocalização, sem saber em quem confiar.
As máfias têm relação com o tráfico de drogas?
O tráfico de pessoas é um crime que costuma se conectar com o tráfico de drogas. Muitas dessas organizações criminosas também traficam drogas ou são financiadas por traficantes. Os relatos dão conta de que muitos desses criminosos obrigam que, nos casos de exploração sexual, as mulheres comprem e usem drogas para aguentar as rotinas exaustivas. Obrigam, inclusive, que elas vendam drogas aos clientes durante os programas. E essas pessoas acabam se apegando às drogas para conseguirem se desassociar daquela realidade. Na rotina da maioria das vítimas que entrevistei, de várias nacionalidades, elas contam que tomavam medicações constantemente; várias se tornaram viciadas em drogas ou viviam à base de antidepressivos.
Quando essas redes são descobertas pelas autoridades, o que acontece com a vítimas após o resgate?
Os instrumentos internacionais preveem que, quando é detectada uma vítima de tráfico humano, ela tem direito a reparação dos danos causados e à restauração de seus direitos. A Espanha firmou convênios internacionais sobre o tema, então no contexto espanhol se essa vítima denuncia a rede criminal que a cooptou ela é acolhida em programa do governo e pode solicitar residência numa casa de proteção. Para quem retorna ao Brasil, há um acordo bilateral com a Espanha que determina que essa pessoa seja assistida: o voo de volta deve ser pago pelas autoridades, e quando chega ao país ela tem que receber assistência integral para reintegração na sociedade. Mas eu trabalhei no Comitê de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (vinculado ao Ministério da Justiça) entre 2013 e 2016 e posso dizer: não temos um fundo de reparação para essas vítimas. Essas pessoas, quando retornam, acabam ficando muitas vezes à própria sorte, expostas à reincidência do assédio dessas quadrilhas.
A Espanha é principal destino de vítimas brasileiras. Para que lugares vão no país?
O tráfico de pessoas para exploração sexual aqui é bem distribuído, de Norte a Sul do país. Madri e Barcelona são portas de entrada de vítimas da América Latina, e a região da Galícia é o polo do negócio. Espanha, Portugal, Suíça e Itália recebem muitas vítimas brasileiras por conta da demanda por pessoas com traços miscigenados. A maioria das vítimas é de mulheres e LGBTQIAP+. No interior de estados como Goiás, Minas Gerais e Tocantins, eles conseguem aliciar facilmente vítimas com este perfil e em situação de vulnerabilidade.
Como o governo espanhol lida com a situação? Como no Brasil a prostituição não é crime?
A Espanha é o segundo principal destino de prostituição na Europa, atrás apenas da Alemanha. Aqui, a prostituição não é regularizada, mas tampouco é ilegal. É proibida a exploração da prostituição, mas não é proibida a realização da atividade em si. Em meio a um debate político aqui bem polarizado sobre a regulamentação ou não da prostituição como um trabalho, estudos mostram que a procura por serviços sexuais têm crescido muito entre os espanhóis. Cresceu, por exemplo, o consumo de prostituição entre jovens entre 18 e 25 anos, e isso precisa ser aprofundado.
O Globo