“Eu não tenho leite. Não tenho o que comer, não como há vários dias”, respondeu uma jovem mãe quando lhe perguntaram sobre o teor do líquido esverdeado na mamadeira que oferecia ao recém-nascido em seu colo, em uma ala da maternidade da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) na província de Khost, no Afeganistão. Era chá verde, que lhe fora oferecido pela equipe do hospital para consumo próprio, mas inadequado para o bebê de apenas sete dias, como tentava explicar uma enfermeira. A jovem, no entanto, não conseguia compreender. A preocupação com a saúde do filho, nascido prematuramente, falava mais alto.
Descrita por Renata Viana, gerente de assuntos humanitários da MSF, a cena no hospital em Khost não é um caso isolado no país assolado por uma grave crise humanitária, agravada após a volta do Talibã ao poder, há exatamente um ano. Viana, brasileira de 45 anos que atua na MSF desde 2017 e voltou brevemente ao Rio após seis meses no Afeganistão, diz que, no último ano, relatórios da organização têm mostrado um aumento de pacientes nos hospitais, principalmente por desnutrição. As crianças estão entre as maiores vítimas.
— Temos a sensação de que a situação se deteriorou ainda mais. Ouvimos mais relatos das dificuldades econômicas, de se obter alimento — relata Viana, que voltará em setembro ao país da Ásia Central, onde trabalha dando assistência a pacientes e famílias em diferentes províncias. — São muitas histórias de pessoas que adiam a ida ao hospital porque não tem dinheiro nem para o transporte. E, quando vão, às vezes o local não tem estrutura, ou tem, mas não há funcionários ou medicamentos.
Após anos de guerras civis ou contra potências externas desde a invasão soviética de 1979, a precariedade da vida no Afeganistão ganhou novas proporções a partir da saída dos EUA e seus aliados, em agosto do ano passado. Com o retorno dos talibãs ao controle de Cabul —20 anos após seu primeiro governo ser derrubado pela invasão americana de 2001, acusado de dar abrigo a Osama bin Laden, chefe da rede terrorista al-Qaeda —, a economia entrou em colapso, mulheres tiveram direitos revogados e a imprescindível ajuda internacional foi prejudicada pelas sanções ocidentais ao novo regime.
— Independentemente do status ou da credibilidade do Talibã com governos de fora, as restrições econômicas internacionais ainda estão causando a catástrofe do país e prejudicando o povo afegão — disse John Sifton, diretor de assuntos da Ásia da organização Human Rights Watch.
Outros fatores também contribuem para piorar a situação. O país foi afetado pela alta dos preços dos alimentos — consequência da guerra na Ucrânia —, enfrenta secas históricas e sofreu em junho o mais letal terremoto das últimas duas décadas, com mais de mil mortos, três mil feridos e milhares de desabrigados.
— Ouvimos muitas histórias de paciente que diz que se alimentou de restos de pão velho doado, por exemplo. Há mulheres grávidas relatando que não têm o que comer, e depois passam por partos prematuros e, consequentemente, dão à luz bebês enfraquecidos que vão precisar de assistência médica — relata Renata Viana. — Há sempre algo chocante em qualquer lugar que se vá.
Dados alarmantes ratificam o depoimento. Cerca de 95% dos 39 milhões de afegãos se alimentam de forma insuficiente, de acordo com as Nações Unidas, percentual que chega perto de 100% em lares chefiados por mulheres, em que é comum a adoção de “medidas drásticas” para a obtenção de alimentos, incluindo venda de crianças, casamentos de meninas em troca de dotes e até a venda de partes do próprio corpo, ainda segundo a ONU.
São dezenas de milhares de crianças internadas desde o início do ano para atendimento de emergência causado pela desnutrição aguda, já arraigada no país, relata a Organização Mundial da Saúde (OMS). A situação é ainda mais grave quando se levam em conta os casos de desnutrição aguda prolongada em crianças com menos de cinco anos, que pode levar a graves problemas de saúde posteriormente, incluindo o nanismo. A OMS estima que 1,1 milhão de crianças afegãs nessa faixa etária estão nesse quadro de gravidade.
No primeiro semestre de 2022, só a MSF atendeu mais de 3.700 crianças desnutridas, 70% do total da organização no país em todo o ano 2021 (5.470). Quase 20 milhões de pessoas, das quais 9,2 milhões de crianças, devem enfrentar altos níveis de insegurança alimentar aguda neste ano, segundo estimativa de julho do Programa Mundial de Alimentos (PMA). Na província Ocidental de Ghor já foi atingida o nível 5, máximo, de desnutrição aguda, considerado “catastrófico” no sistema de avaliação do PMA.
Com a alta demanda, hospitais e outras unidades de saúde — com infraestrutura precária e número insuficiente de profissionais — ficam lotados, comprometendo o atendimento geral com a priorização dos casos considerados mais graves. A conduta, afirma Renata Viana, transforma os atendimentos emergenciais em um ciclo interminável de idas e vindas de pacientes, cujos casos evoluem rapidamente sem um tratamento e acompanhamento adequados.
Em julho, um hospital no distrito de Musa Qula, no Sul do país, foi forçado a atender apenas pessoas com sintomas típicos de cólera, uma consequência do terremoto do mês anterior, segundo a ONU. Cerca de meio milhão de casos de diarreia aguda e aquosa foram relatados no país em junho.
— É muito difícil — disse à AFP o diretor do hospital, Ehsanullah Rodi. — Não tínhamos visto nada assim no ano passado ou antes.
Diante de tantas histórias que ouve e observa, Renata Viana ressalta um ponto: a falta de esperança nos olhos da maioria, sobretudo das mulheres. Isso porque, segundo ela, é comum se deparar com mães que relatam situações em que se veem impedidas de sair para procurar assistência médica para os filhos por falta de autorização de algum membro da família do sexo masculino — uma das inúmeras exigências do grupo fundamentalista.
Com a ascensão do Talibã, muitas mulheres perderam seus empregos, o que impactou as famílias em que elas são as principais ou únicas fontes de renda. Sem dinheiro, não há para onde fugir.
— O que mais me marca quando eu converso com essas pessoas é quando falam que olham para um lado e para o outro e não veem solução — lamenta Viana. — Alguns dizem que, se pudessem, sairiam do país. Mas não é tão fácil, as dificuldades são muitas, especialmente para as mulheres. É uma situação triste quando a gente percebe que a esperança já não existe mais ali.