A constitucionalidade do regime da separação obrigatória de bens no casamento ou união estável de pessoas maiores de 70 anos volta a ser discutida pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em sessão prevista para a próxima quarta-feira (18). Trata-se de um recurso extraordinário contra decisão do TJ-SP (Tribunal de Justiça do estado de São Paulo), que desconsiderou os direitos da viúva à herança, com base no Código Civil.
A ação de origem é sobre o regime de bens a ser aplicado a uma união estável, que começou quando um dos cônjuges tinha mais de 70 anos. No caso em questão, a decisão vai influenciar a elaboração de um inventário.
Em primeira instância, a Justiça considerou que deveria ser aplicado o regime geral da comunhão parcial de bens e, assim, a companheira teria o direito de participar da sucessão hereditária com os filhos do falecido, sendo uma das herdeiras.
Para essa decisão, foi aplicada uma tese fixada pelo Supremo de que a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, ou seja, os parceiros de casamento e de união estável, é inconstitucional.
Entretanto, o TJ-SP tomou decisão contrária, com base no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, que prevê a obrigatoriedade do regime de separação de bens para o casamento de pessoa com mais de 70 anos. Essa lei teria sido criada para proteger a pessoa idosa e seus herdeiros necessários de casamentos que possam ser motivados por interesses econômico-patrimoniais, conhecidos popularmente como “golpe do baú”.
O Código Civil não traz regulamentação para as situações em que o maior de 70 anos constitui união estável. Contudo, o tribunal paulista reformou a decisão, aplicando o regime de separação de bens a essa forma de união conjugal.
A decisão anterior, da primeira instância, havia considerado que o argumento de proteção do idoso fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, uma vez que o cidadão com 70 anos ou mais é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens.
Com o recurso extraordinário no STF, a companheira do falecido propõe que esse trecho do Código Civil seja reconhecido como inconstitucional, e que o regime geral da comunhão parcial de bens possa ser aplicado à sua união estável.
A demanda é fundamentada no artigo 102, inciso III, “item a” da Constituição Federal, que define ser atribuição do Supremo “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição […]”.
O relator do caso é o ministro Luís Roberto Barroso, que também é o presidente da Casa. O STF informa que a inclusão do processo na sessão de quarta-feira (18) diz respeito exclusivamente à leitura do relatório e à realização das sustentações orais. O início da votação e o julgamento serão agendados posteriormente.
Análises de juristas
“A lei no Brasil determina que pessoas com 70 anos ou mais, se vierem a se casar, deve ser pelo regime de separação obrigatória de bens. Isso foi uma forma de o legislador, lá atrás, preservar os interesses dessas pessoas, que podem ser mais vulneráveis do que os mais novos”, fala Amanda Helito, especializada em Direito de Família e em planejamento sucessório pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e sócia do escritório PHR Advogados.
Ela conta que, há alguns anos, esse artigo da legislação vem sendo discutido, “tanto que, em 2002, o STF fez uma súmula, a de número 377, que diz que mesmo nos regimes de separação obrigatória de bens, para quem tem 70 anos ou mais, é possível que haja comunicação do que foi adquirido durante o casamento. Então essa lei já não é tão absoluta assim”, pondera.
Stefano Ribeiro Ferri, que também é especialista em Direito de Família, defende outro ponto de vista: “Conforme entendimento da Procuradoria-Geral da República, é constitucionalmente legítimo o uso da idade como critério de diferenciação entre os indivíduos, salvo se for manifestamente desproporcional ou injustificado”, diz. Ferri também é membro da comissão de Direito Civil da OAB/Campinas e assessor da 6ª Turma do Tribunal de Ética da OAB/SP.
“O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o tratamento jurídico diferenciado, conferido a um determinado indivíduo ou grupo de indivíduos, nem sempre é inconstitucional em si mesmo, sendo indispensável, para se chegar a essa conclusão, averiguar a legitimidade das causas que ensejaram a desequiparação”, comenta.
Para Ferri, “um regime de bens diverso da separação legal poderia acarretar consequências ruinosas ao cônjuge idoso, na hipótese de dissolução da sociedade conjugal [separação ou divórcio], ou aos seus filhos, no caso de dissolução após a morte”.
O advogado Leonardo Marcondes, que atua em Direito de Família, afirma que estabelecer o regime de bens com base na idade fere o princípio da dignidade da pessoa humana. “A escolha do regime é uma decisão íntima de quem está constituindo um casamento ou uma união estável, e isso deve ser respeitado pelas outras pessoas”, justifica o profissional, do escritório Marcondes Madureira.
Impacto social do tema
No tribunal, o processo é objeto do ARE (Recurso Extraordinário com Agravo) 1309642. O ministro Luís Roberto Barroso se manifestou pela repercussão geral do tema, reconhecida pelo Plenário (Tema 1.236), ressaltando a relevância da matéria, pois, do ponto de vista social, a definição do regime de bens exerce impactos diretos na organização da vida da sociedade brasileira.
Por meio desse ato, ele confirmou que o recurso extraordinário apresentado, relacionado a uma questão constitucional, tinha relevância suficiente para ser apreciado no Supremo Tribunal Federal, como orienta a EC (Emenda Constitucional) 45/2004, regulamentado pela Lei 11.418/2006 e emendas posteriores.
Barroso ressaltou que, sob o aspecto jurídico, considerava a relação do processo com a interpretação e o alcance de normas constitucionais que asseguram especial proteção a pessoas idosas. Quanto à ótica econômica, ele argumentou que a tese a ser fixada afetará diretamente os regimes patrimonial e sucessório dos maiores de 70 anos.
“Esse é um assunto de grande relevância social, jurídica e econômica, mas é importante a gente ressaltar que os direitos individuais e fundamentais não podem ser negligenciados nesse processo”, destaca Leonardo Marcondes.
Amanda Helito também fala sobre a autonomia da vontade e o princípio da dignidade da pessoa humana. “Para ter uma ideia, no STF, a idade para a aposentadoria compulsória é 75 anos. Então, como a lei determina que pessoas com 70 anos já podem não ter mais tanto discernimento e legitimidade para escolher o seu relacionamento e com quem se casar, escolher, na verdade, o regime de bens desse casamento, se os julgadores do STF, que tomam as principais decisões do Judiciário no país, podem trabalhar tranquilamente, sem nenhum questionamento sobre seu discernimento, até os 75 anos?”.
A advogada cita, ainda, outro exemplo da vida real: “O presidente da República, Lula, tem 77 anos, e se casou, no ano passado, com a Janja, uma mulher bem mais nova do que ele. Então, parece que esse é um artigo de lei que talvez deva, sim, ser revisto”, analisa.
Para Marcondes, é preciso considerar o aumento da expectativa de vida do brasileiro. “Pessoas de 70 anos são plenamente saudáveis e têm todas as condições de continuar aproveitando a vida, viajando, vivendo. Elas têm capacidade civil e merecem o direito de decidir sobre o regime que é mais adequado para o seu relacionamento e para os seus interesses, sem qualquer tipo de imposição legal”, afirma.
Ele diz que a presunção de que o casamento ou união estável de pessoas acima de 70 anos só pode ser por interesse econômico-patrimonial reforça vários estereótipos negativos, em especial quando mulheres mais jovens se relacionam com homens mais velhos.
“É claro que existe esse tipo de situação, mas, muitas vezes, aquela pessoa está abandonada pela família, solitária, e encontra apoio em um novo relacionamento. Quantas pessoas já não construíram histórias incríveis depois dos 70?”, questiona o advogado.
Fonte: R7.