O governo quer enxugar o número de carreiras do serviço público federal. Se hoje há cerca de 150 carreiras — que englobam cargos como os de auditores fiscais, policiais federais, gestores e analistas de políticas públicas —, a ideia é que esse número caia para algo entre 20 e 30.
Essa é uma das medidas em estudo no Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), que elabora uma proposta de reforma administrativa do governo Lula a ser apresentada ao Congresso. As mudanças atingiriam servidores do Executivo, Legislativo e Judiciário no âmbito federal.
O esboço da reforma foi antecipado pelo secretário extraordinário para a Transformação do Estado, Francisco Gaetani, da pasta da ministra Esther Dweck, em entrevista ao GLOBO. Ficam fora do escopo juízes e procuradores, considerados membros de Poder, e carreiras já organizadas, como as das Forças Armadas e o corpo diplomático do Itamaraty.
O governo rejeita a proposta de reforma administrativa enviada ao Congresso no governo de Jair Bolsonaro, alegando que ela tem viés fiscalista e punitivo aos servidores, e quer apresentar uma substituta, sem mexer na Constituição.
Fusão ou eliminação
O plano para a fusão ou eliminação de carreiras é garantir os direitos dos atuais servidores, criando regras de transição distintas para os que ingressaram no serviço público antes de 1988, entre 1988 e 1995, entre 1995 e 2003, e até 2010.
As regras mexeriam mais com os mais recentes e principalmente com os novos entrantes dos concursos autorizados em 2023, que somam cerca de 9 mil vagas.
— A ideia é fechar um mapa completo das carreiras, até o fim do ano. De 150 carreiras, vamos fazer um mapa de 20, 30 que fazem sentido — disse o secretário, acrescentando que devem ser reforçadas categorias consideradas essenciais hoje ao Estado, antigas ou recentes, como as de estatísticos, psicólogos e profissionais de tecnologia.
Além do redesenho das carreiras, o governo estuda reduzir o salário inicial de novos servidores concursados (que ainda vão ocupar as vagas), de forma a aproximar as remunerações de entrada das do setor privado.
A partir daí, seriam definidos novos níveis de progressão nas carreiras, possibilitando ao governo dar aumentos salariais diferenciados entre categorias para reduzir a alta desigualdade no serviço público. Carreiras que ganham menos teriam reajustes maiores.
Servidor com carteira
Também faz parte do pacote de medidas permitir a contratação de trabalhadores com carteira assinada na administração indireta federal (como estatais, autarquias e fundações), em vez de somente pelo regime estatutário. Gaetani cita como exemplo hospitais federais do Rio, que poderiam ter mais flexibilidade contratando profissionais pela CLT, sem estabilidade.
Celetistas poderiam se somar a estatutários em órgãos auxiliares dos ministérios (administração direta), como a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ou o IBGE, do Planejamento. Uma das propostas em análise seria um projeto de lei autorizando a criação de fundações estatais de direito privado, como as que existiam antes de 1988. A Constituição atual jogou todos os servidores no Regime Jurídico Único.
— Esse regime não é ideal para vários órgãos públicos, onde é melhor que eles funcionem num regime celetista, flexível, para que as organizações sejam capazes de entregar os resultados — disse Gaetani, acrescentando que, para isso, basta alterar um decreto-lei (200/1967), sem necessidade de alterar a Constituição.
Temporários
O governo também quer revisar as regras dos contratos temporários no setor público, para ampliar ou reduzir prazos, dependendo da atividade, como nos casos de brigadistas do Ibama e de reforços no corpo de analistas do INSS para reduzir a fila de pedidos atrasados. A ideia é também rever os benefícios a fim de evitar precarização, disse o secretário.
As medidas são discutidas em dez mesas de negociação instaladas no MGI, e as conclusões serão agrupadas em até cinco projetos de lei a serem encaminhados ao Congresso ainda neste ano.
Gaetani explicou que mais da metade das carreiras públicas atuais estão em extinção. São pessoas que estão a pouco tempo de se aposentar e em funções que estão desaparecendo. Para o secretário, mesmo tirando as obsoletas , ainda há muitas carreiras na estrutura atual, que precisa ser simplificada:
— A gente tem de agrupar e alinhar as carreiras para equilibrar mais o jogo de umas em relação a outras, ao longo de três, quatro anos. Hoje, cada carreira raciocina isoladamente: “meu caso é muito especial, minha situação é muito particular”. Isso levou à situação atual, cheia de distorções.
Combate à desigualdade
Gaetani criticou o fato de movimentos grevistas de categorias no serviço público terminarem com reajustes sem uma discussão sobre reestruturação das carreiras. Na avaliação dele, ao longo do tempo, a remuneração no serviço público se descolou do setor privado, mesmo no início de carreira, o que não faz sentido:
— Vai ser difícil o governo abrir um salário inicial acima de R$ 20 mil, por exemplo. O de várias carreiras hoje está nessa faixa. Estamos estudando aumento diferenciado. Em vez de dar o mesmo aumento para todo mundo, talvez fosse o caso de dar um aumento maior para o pessoal de baixo e menor para o pessoal de cima.
Ele disse também que a proposta vai prever diferenciação entre salário cheio e gratificação por desempenho, dependendo da natureza do serviço a ser prestado. Em algumas áreas, como tecnologia, considerada essencial para melhorar a qualidade e a produtividade dos serviços públicos, os salários estão defasados em relação ao setor privado, e a ideia é aumentar.
Supersalários
Embora ainda não haja estimativas de impacto financeiro das mudanças, um dos pilares da reforma administrativa defendida pelo governo é apoiar projetos correlatos que estão no Senado.
Um deles ataca supersalários, reduz penduricalhos que maximizam os ganhos de categorias privilegiadas e limita a remuneração no serviço público ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (atualmente R$ 41,6 mil). O outro amplia o tipo de avaliação nos concursos para além dos testes de múltipla escolha, como prova escrita, oral e até teste físico, dependendo da atividade.
Também faz parte dos planos do governo a ampliação de cotas raciais no serviço público de 20% para 30%, e o concurso nacional unificado, anunciado na semana passada, já em andamento.
Resistências internas
As linhas gerais da reforma administrativa pretendida pelo MGI foram apresentadas a vários ministros no início de setembro. Novas reuniões deverão ser feitas à medida que as discussões avançarem. Gaetani admite que o tema é polêmico e enfrenta resistências dentro do próprio governo. Mas ponderou que a mudança é necessária, sobretudo para melhorar a eficiência no setor público:
— Vamos discutir. Não há mágica em relação às carreiras e não há soluções isoladas. O governo tem que encontrar uma forma de sistematizar.
O Globo