O médico Carlos Umaña nasceu na Costa Rica, um país que não mantém forças militares. Ainda assim, ele acumula vasto conhecimento sobre as armas nucleares existentes atualmente — e sobre o risco não só de que elas sejam usadas mas de que sejam ativadas por acidente, por erro humano ou pela ação de hackers.
Umaña é uma das maiores referências na luta pela eliminação dos arsenais nucleares, um caminho que, segundo ele, depende da sua estigmatização e da conscientização sobre os riscos da narrativa atual.
Para ele, a postura de “bancar o mais valente com armas nucleares é algo incrivelmente perigoso, que coloca todos nós à beira de um precipício”.
Carlos Umaña é copresidente da Associação Internacional de Médicos para a Prevenção da Guerra Nuclear, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1985.
Ele próprio recebeu o prêmio em 2017, com a Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (ICAN, na sigla em inglês), à qual pertence.
A BBC News Mundo — o serviço em espanhol da BBC — conversou com Carlos Umaña durante o evento Hay Festival Querétaro, que acontece no México entre 7 e 10 de setembro de 2023.
BBC – A invasão da Ucrânia pela Rússia fez renascer o medo da destruição em massa num mundo cada vez mais conectado e vulnerável. Estamos mais próximos do que nunca de uma guerra nuclear?
Carlos Umaña – Diversos especialistas estão de acordo com esta análise.
O dado mais famoso seria o Relógio do Apocalipse, do Boletim de Cientistas Atômicos. Neste ano, devido a esta guerra, ele está marcando 90 segundos para meia-noite, ou seja, o risco mais alto da história.
Este relógio mede o risco de uma destruição catastrófica pelas mãos humanas e seus ponteiros variaram ao longo da história. Quanto mais perto da meia-noite, maior o perigo.
Em 1963, com a crise dos mísseis de Cuba, ele esteve em sete minutos para meia-noite. Depois, em 1983, ficou em dois minutos. No final da Guerra Fria, faltavam 14 minutos.
BBC – Em um momento em que a retórica e as ameaças de uso de armas nucleares pela Rússia fizeram disparar todos os alarmes, o senhor acredita que os líderes estão conscientes das consequências de um conflito nuclear?
Umaña – Eles estão conscientes, mas este também é um jogo com o qual estão acostumados.
As consequências, sem dúvida, seriam devastadoras para o mundo.
Fala-se, por exemplo, de uma única detonação de uma arma nuclear como algo tático ou estratégico, como se uma bomba fosse algo pequeno. Mas, na verdade, não existem armas nucleares pequenas.
Se uma arma nuclear tática de cerca de 100 quilotons — que teria a potência de cinco ou seis bombas de Hiroshima — fosse detonada em uma cidade grande, ela teria o potencial de aniquilar imediatamente centenas de milhares de pessoas e deixar muitíssimas outras feridas.
E, quando falamos em feridos, estamos falando da síndrome aguda da radiação, que é a decomposição dos órgãos e dos sistemas vitais, um dos sofrimentos mais dolorosos que qualquer ser vivo pode atravessar.
BBC – E se ocorresse mais de uma detonação?
Umaña – Se falarmos em uma guerra nuclear em larga escala, além das dezenas de milhões de mortos e feridos, também seria criada uma enorme quantidade de fuligem e escombros, que subiriam até a estratosfera e bloqueariam a luz solar.
Este bloqueio, por sua vez, provocaria escuridão e uma queda drástica e súbita da temperatura, em média, de cerca de 25°C. É o que chamamos de inverno nuclear.
Assim, o que quer que sobrevivesse à devastação e à radiação precisaria também enfrentar o frio extremo e a ausência da luz solar.
BBC – Qual o risco de que isso aconteça?
Umaña – Este é o ponto crucial. Atualmente, o risco de falhas de interpretação e erros de cálculo é altíssimo.
Já observamos que, só nos Estados Unidos, ocorreram mais de 1.000 acidentes com arsenais nucleares e, em seis ocasiões publicamente conhecidas, estivemos à beira de uma guerra nuclear em larga escala, não em época de guerra, mas em tempos, entre aspas, de paz.
O que acontece? Dentre as 12,5 mil ogivas dos arsenais nucleares mundiais, existem cerca de 2.000 em estado de alerta máximo, ou seja, elas estão prontas para serem detonadas em um intervalo de cerca de 6 a 15 minutos.
Estes sistemas respondem a quem der a ordem de detoná-los. Eles dependem de sistemas de alerta máximo, que são vulneráveis a ciberataques, erros técnicos e erros humanos. Eles já confundiram coisas banais, como nuvens de tempestade, tempestades solares, bandos de gansos ou balões meteorológicos, com ameaças nucleares.
As pessoas que estão por trás desses sistemas precisam interpretar esses alarmes como sendo verdadeiros ou falsos.
Ou seja, em um contexto de guerra, com ameaças nucleares explícitas e diversas linhas vermelhas já cruzadas, o risco de um cálculo errado ou interpretação errônea é muito mais alto.
BBC – Então, a guerra nuclear mais provável não é intencional, mas acidental?
Umaña – Sim, existe um componente acidental certamente muito forte e também há mais um ponto que precisamos considerar.
Quando as pessoas dizem que a guerra nuclear é algo pouco provável, porque nenhum líder seria louco a este ponto, precisamos considerar que estamos lidando com pessoas emocionais e que todas as pessoas pensam de forma diferente diante de uma crise.
De fato, as simulações elaboradas com os tomadores de decisões nesses ambientes acabam por escalar a guerra, já que é o que eles precisam fazer, porque é o que manda o protocolo, ou seja, se sou atacado com armas nucleares, preciso responder ao ataque com armas nucleares e assim sucessivamente.
É a destruição mútua garantida. É melhor que tudo seja destruído e não apenas a mim.
Este é o pensamento atual dos líderes e, no contexto de um acidente, é algo muito perigoso.
BBC – A aceitação de uma ordem internacional em que alguns países contam com armas de destruição em massa que são proibidas para os demais é considerada insustentável por muitos especialistas. Qual o grau de instabilidade desta situação?
Umaña – Existe aqui uma contradição porque, nos anos 1960, depois da crise dos mísseis de Cuba, foram elaborados dois tratados muito importantes.
Um deles é o de Tlatelolco, assinado em 1967 [no México] e que entrou em vigor em 1969, que estabeleceu que toda a América Latina e o Caribe formam uma zona livre de armas nucleares.
O outro é o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, negociado em 1969 e que entrou em vigor em 1970. Ele tem três pilares: o desarmamento nuclear, a não proliferação e o uso pacífico da energia nuclear como direito inalienável.
Naquele momento, havia cinco Estados nucleares: Estados Unidos, União Soviética (agora, a Rússia), China, França e Reino Unido. Eles se comprometeram com o desarmamento nuclear em um prazo de 25 anos.
Pelo segundo ponto do tratado, os chamados Estados não nucleares comprometeram-se a não adquirir armas nucleares. E o terceiro ponto determinava que todos os países têm o direito de desenvolver a energia nuclear.
Obviamente, o desarmamento não ocorreu em 1995 e a ideia de que as armas nucleares são apenas para alguns envia ao restante da comunidade internacional a mensagem de que as armas nucleares são necessárias e representam um privilégio, o que debilita o regime de não proliferação.
A não proliferação depende de progressos, de verdadeiros avanços no desarmamento. É algo a que os países nucleares, que agora são nove [àqueles, somaram-se Paquistão, Índia, Israel e Coreia do Norte], não estão dispostos a ceder.
BBC – Mas, então, como fazer frente à oposição ao TPAN (o Tratado sobre a Proibição das Armas Nucleares), que é o primeiro acordo que promove a proibição universal das armas nucleares para absolutamente todos os países? O sr. acredita que ele atingirá seu objetivo?
Umaña – Este tratado traz algo de novo: é uma proibição universal, que fortalece o sistema multilateral e estigmatiza as armas nucleares.
Precisamos analisar o fenômeno das armas nucleares, quais são as suas causas e o que faz com que os países queiram possuí-las.
Trata-se de observar sua verdadeira face, pois as armas nucleares não são armas práticas. Elas foram feitas para causar destruição em massa e matar a maior quantidade possível de civis, de forma desumana.
Elas não respeitam fronteiras e é praticamente impossível detonar uma bomba nuclear sem que alguém mais detone outra arma contra o primeiro. Por isso, seu uso seria um ato suicida.
Os países que possuem essas armas estão conscientes de que não podem usá-las. O poder das armas nucleares vem da ameaça do seu uso, do poder simbólico do que representa ser um Estado nuclear. É um símbolo de dissuasão.
Este componente de estigmatização é um fenômeno que já observamos com outras armas de destruição em massa, como as armas químicas, biológicas, as minas terrestres e as armas de fragmentação.
Atualmente, nenhum país se vangloria de ser uma potência química, nem de possuir armas biológicas. Isso porque existem rigorosas normas internacionais e um clima mundial de condenação moral, que faz com que elas sejam um tabu.
BBC – Até que ponto pode ser lento este processo de estigmatização das armas nucleares?
Umaña – Depende de vários fatores e é um pouco difícil de prever. A proibição é uma mudança de paradigma.
De um lado, as pessoas devem ter consciência das consequências das armas nucleares. Por outro, isso deve gerar pressão e ativismo, tanto das ruas, quanto em nível político e diplomático. E isso exige tempo.
Se tudo correr bem, digamos que, em cerca de 10 anos, poderíamos conseguir a eliminação das armas nucleares, mas é claro que pode ser antes ou depois.
Neste momento em que estamos à beira do precipício, o mais importante é nos afastarmos um pouco, caminhando até conseguir eliminá-las por completo. Enquanto não conseguirmos, não estaremos livres do vírus: ou acabamos com as armas nucleares, ou elas acabam conosco.
BBC – Neste momento de ameaças, onde fica o Manifesto Russell-Einstein, assinado em 1955, que dizia, entre outras coisas: “Apelamos, como seres humanos para seres humanos: lembrem-se da sua humanidade e esqueçam o resto”? Será que esquecemos nossa humanidade?
Umaña – É complicado, porque não é uma questão da cultura humana em geral.
É um sistema que faz prevalecer a rivalidade entre alguns membros, uma rivalidade que os deixa míopes quanto ao progresso real e às necessidades, tanto da sua população, quanto de toda a humanidade.
Se alterarmos nosso esquema mental, se pensarmos em utilizar as ferramentas de interconectividade que temos agora para incentivar o diálogo e a cooperação, podemos chegar a esse diálogo entre seres humanos.
É preciso deixar de pensar nos demais como diferentes e inferiores, sobre os quais precisamos imperar — pensamento que assumiu diversas formas ao longo da história.
Na cultura popular, por exemplo, as armas nucleares são empregadas nos filmes da Marvel para acabar com os alienígenas, que são feios, malvados e querem destruir a humanidade. A única saída é matar a todos.
Nos anos 1940, os alienígenas eram os japoneses. Era uma forma de justificar o homicídio em massa cometido em Hiroshima e Nagasaki.
Seu sofrimento não importava porque todos eram cúmplices das decisões da sua cúpula militar. Todos mereciam que a bomba atômica caísse sobre eles, porque também eram outros, eram maus, eram diferentes.
O discurso da diferença também é empregado nos regimes totalitários para justificar a guerra e estigmatizar toda uma população, legitimando o ataque militar.
BBC – Falando no Japão, o filme Oppenheimer resgatou a história deste tipo de armamento. Como o sr. vê sua evolução desde a Segunda Guerra Mundial até hoje? O sr. acredita que a humanidade não aprendeu com seus erros?
Umaña – É muito interessante, porque é preciso conhecer a história, mas a história verdadeira. Houve muitas evasivas a respeito.
Quando ocorreram os ataques a Hiroshima e Nagasaki, as consequências humanitárias foram ativamente acobertadas, não só pelo governo norte-americano, mas também por parte do Japão.
Os hibakusha — sobreviventes dos ataques nucleares — tinham censuradas suas cartas, fotografias e até sua arte e seus poemas.
Eles não queriam que o mundo soubesse o que as pessoas estavam sofrendo devido à radiação. Queriam celebrar as armas nucleares sem observar o drama humano que elas causaram.
A crise que atravessamos agora se deve exatamente à retórica adotada em torno das armas nucleares e como muitas pessoas as consideram um mal necessário. Como elas se infiltraram nas doutrinas de segurança e precisamente por esse mau uso das informações.
Por isso, a primeira coisa que precisamos fazer é informar bem quais são os riscos.
Sim, eu acredito na bondade inerente do ser humano, que é algo que desaprendemos, de acordo com nosso contexto cultural, e precisamos incentivar.
E deixar de nos submetermos sem questionamento a uma violência sistêmica estrutural patriarcal, a um sistema que governa pela imposição, no qual o mais forte é quem manda.
O erro foi não procurar a cooperação, não buscar o entendimento. Foi acreditar que é preciso sempre haver alguém inferior a nós para podermos abusar ou explorar.
É algo que fazemos com os outros seres humanos e com as demais espécies, ou com a própria natureza.
Precisamos deixar de ignorar nossa humanidade, nossos impulsos e destacar a questão da convivência, a questão da paz.
Créditos: G1.