“Ser rico não é pecado”, escreveu João Camargo, do Grupo Esfera, em um artigo, dias atrás, que causou certo frisson na internet. Talvez sem querer, ele tocou em um tabu brasileiro. Todo mundo se lembra de Tom Jobim dizendo que “no Brasil, sucesso é ofensa pessoal”. A frase é ótima, mas talvez seja apenas uma meia verdade. O que somos é um país ranzinza. Metade acha o Neymar um horror porque apoiou o Bolsonaro; a outra metade acha o mesmo do Chico Buarque, pela razão inversa. Uma coisa me parece inegável: temos um problema com o sucesso econômico. E não há coisa que desperte maior onda de xingamentos, no mundo da virtude fake, na internet, do que defender os mais ricos. Não há pecado nenhum em ser um rico no Brasil. Você passa a semana na Faria Lima e o fim de semana na Fazenda Boa Vista, e ninguém vai lhe incomodar. O que você não pode é elogiar. Tentar passar essa ideia absurda de que o “empreendedor”, que “inova”, “cria riqueza e empregos”, contribui para o desenvolvimento do país. Isso aí passa de qualquer limite. Foi um pouco do que o João experimentou com seu artigo. E confesso achar ótimo que alguém se arrisque a dizer alguma coisa fora do script.
O ponto-chave desse debate gira em torno da ideia algo difusa de que “os ricos devem pagar a conta”. Sob certo aspecto, é uma ideia óbvia. O sistema tributário deve ser progressivo, não parece haver dúvidas sobre isso. O problema é que há algo que se perde nessa conversa e que também é perfeitamente óbvio: que, em vez de focar na ideia obsessiva de “aumentar impostos”, deveríamos discutir antes o custo e a eficiência do Estado. Ainda agora, o governo envia para o Congresso um projeto de Orçamento prevendo zerar o déficit, no ano que vem, com um pequeno detalhe: projeta 168 bilhões de reais em novas receitas sem um mísero aceno de corte de despesas, reforma ou ajuste estrutural na máquina pública.
O que está em jogo, no fundo, é um debate sobre como conduzir o país. Debate que empurramos para debaixo do tapete na disputa eleitoral. Para quem gosta de estudar essas coisas, sugiro a leitura de um livro dos economistas Alberto Alesina, Carlos Favero e Francesco Giavazzi, chamado Austeridade. Eles analisaram processos de ajuste fiscal feitos ao longo de mais de quatro décadas, no âmbito da OCDE, e chegaram a uma conclusão à qual deveríamos prestar atenção: políticas de ajuste feitas à base de aumento de impostos “têm sido amplamente recessivas, do curto para o médio prazo (três a quatro anos à frente)”, além de aumentar o endividamento; ajustes pautados pelo corte estrutural da despesa pública, em condições adequadas, mostraram exatamente o efeito contrário. Aumentar impostos tende a ser um remédio efêmero. Induz o país a empurrar com a barriga as reformas que precisa fazer, não mexe com o crescimento da máquina estatal, sua despesa orgânica, direitos adquiridos, privilégios e ineficiências. E gera um problema de confiança. Não atacando o problema estrutural, contrata-se a necessidade de um novo ajuste, a um custo eventualmente ainda maior. Em boa medida, foi o que o Brasil viveu na grande crise de 2015 e 2016, com a qual, diga-se de passagem, aprendemos muito pouco.
“Mudamos de vocabulário. Saem as reformas, entra o gasto público”
O interessante, no caso brasileiro, é que não teríamos o menor problema em cortar despesas perfeitamente inúteis da máquina estatal. Leio que o Congresso quer 5,5 bilhões de reais para torrar na campanha do ano que vem, no fundão eleitoral. É só um exemplo. Que tal fazer o que o Congresso mesmo decidiu, na PEC Emergencial, que é reduzir os incentivos fiscais a 2% do PIB, menos da metade do que existe hoje? Ou quem sabe cortar todos os salários do funcionalismo acima do teto constitucional? O CLP fala em 25 300 pessoas ganhando acima de 41 600 reais, em um país em que 90% das pessoas ganham menos de 3 500 reais. Quem sabe também revisamos o oceano de emendas parlamentares, orçadas em 37 bilhões de reais, para 2024, que faz o Brasil ser um campeão global nesse tipo de dispersão orçamentária. Só para provocar um pouco, por que não ensaiamos uma “democracia sueca”? Algo do tipo: em vez de um chefe de poder ir 102 vezes de jatinho para casa, no fim de semana, vai em voo de carreira. Ou, quem sabe, reduzir à metade, de 25 para doze ou treze, o número de assessores por deputado? Um dia visitei o Parlamento sueco e perguntei quantos assessores havia lá para cada parlamentar. “Perto de um”, me respondeu uma deputada. Lembro que saí pelas ruas frias de Estocolmo pensando que realmente temos um problema.
O ponto é que o Brasil tem uma enorme oportunidade. Dado nosso incrível volume de desperdício de dinheiro público, podemos produzir um ajuste estrutural no gasto público sem cortar rigorosamente nada que seja efetivamente importante para o país. Na reforma da Previdência instituímos uma idade mínima para as aposentadorias. Alguém acha que era importante que as pessoas se aposentassem antes dos 50 anos? De novo, é só um exemplo. Não há bala de prata. Nosso destino é enfrentar o que o economista Alfred Kahn chamava de “tirania das pequenas decisões”. Cada ineficiência removida não vai resolver, isoladamente, nosso problema estrutural. Seu custo político será alto e seu benefício, relativamente pequeno. No conjunto, porém, as reformas apontam um caminho. Alfred Kahn gostava de citar o exemplo da ferrovia que ligava a cidade de Ithaca a Nova York. Nos dias difíceis do inverno, a ferrovia era a única opção para sair ou chegar à cidade. Ao longo do ano, porém, a maioria optava pelo transporte aéreo ou rodoviário. O resultado é que a ferrovia morreu à míngua. Ela quebrou não porque as pessoas quisessem que isso acontecesse, mas porque o custo de cada pequena decisão individual para que ela permanecesse funcionando era muito alto. É a mesmíssima coisa com as decisões que precisamos tomar. Aprovar aqueles itens da reforma administrativa? Terminar com as “licenças-prêmio”, com as férias de sessenta dias? Os salários fora do teto? As “progressões por tempo de serviço”? Avaliar desempenho dos servidores? Nada disso resolve o problema, e a cada uma dessas decisões haverá uma enorme confusão. O ponto é o que é que precisa ser feito. É nosso caminho para Ithaca. O caminho seguro, feito à base de infinitas pequenas decisões, e mesmo por isso o mais difícil de trilhar.
O Brasil tem sido um país incerto. Nos anos 90, fizemos o Plano Real, as privatizações, as agências reguladoras, as OSs, a lei de responsabilidade fiscal. Depois de 2016 ensaiamos um novo ciclo reformista com o teto de gastos, a reforma trabalhista, a da Previdência, a independência do Banco Central, o marco do saneamento. Agora mudamos de vocabulário. Saem de cena as reformas, entra o gasto público. E com ele a demanda por mais impostos. Talvez seja nosso DNA. País sem convicção modernizadora, sem apetite para perseverar em escolhas difíceis que, lá no fundo, todos sabem que precisamos fazer.
Por Fernando Schüler/Veja.