“Vivemos tempos estranhos.” O desabafo, ao telefone, é feito por um dos delegados da Polícia Federal que integraram a equipe de investigação da Operação Lava Jato. Ele se refere ao temor de que, após a correição extraordinária da Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e na 13ª Vara Federal de Curitiba, os policiais federais que atuaram na operação tenham entrado na mira do governo federal. Desde o ano passado, ex-integrantes da Lava Jato vêm sendo removidos para funções menores. Hoje, há um medo relacionado à abertura de investigações criminais e procedimentos administrativos contra eles, sob a justificativa de que cometeram “abusos” no passado.
Surgiram logo no início do atual governo os primeiros indícios de que poderia haver represália contra agentes que atuaram nos inquéritos e diligências relacionados a Lula. No dia 23 de fevereiro, a convite de Andrei Passos, então recém-empossado diretor-geral da Polícia Federal, o delegado gaúcho Sérgio Eduardo Busato foi nomeado Delegado Regional Executivo da Superintendência Regional de Polícia Federal no Rio Grande do Sul. Pouco depois, em 3 de março, uma nova portaria desfez a nomeação. Busato foi impedido de assumir o cargo para o qual havia sido convidado pessoalmente por Andrei. Motivo: coubera a ele cumprir o mandato de soltura de Lula, em 2019. Na avaliação do presidente e do seu entorno, ele não agiu com a velocidade desejada.
“Hoje eu estou numa delegacia de procedimentos não especializados, onde não se investiga crime organizado ou crimes financeiros”, diz um dos delegados ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato. “Eu captei o recado, sabe? Estou num lugar onde não há muito risco de incomodar. É como se tivesse virado uma onda. Decidiram que tudo que aconteceu na Lava Jato foi errado, sem exceção. E muita gente prometeu revanche.”, complementa esta mesma fonte.
Outro exemplo é o do delegado Márcio Adriano Anselmo, que deu o start nas investigações da Lava Jato no Paraná. Foi ele quem desenterrou um inquérito sobre o doleiro Alberto Youssef de uma pilha de investigações estacionadas e depois identificou o vínculo entre o doleiro e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, presenteado com um carro de luxo. Depois de sua atuação em Curitiba, Anselmo assumiu o cargo de coordenador-geral de repressão à corrupção e lavagem de dinheiro, em Brasília. Ficou no posto até junho de 2020. quando teve autorização para cursar um mestrado em Washington, nos Estados Unidos. Anselmo hoje é chefe do Serviço de Pós-Graduação da Academia Nacional de Polícia. Um bom cargo, mas distante da linha de frente das investigações.
Os policiais federais não foram até hoje os principais alvos de Lula. Suas baterias estiveram mais voltadas contra personagens como Deltan Dallagnol, ex-procurador da Lava Jato e ex-deputado federal, e o próprio Sergio Moro. Sobre esse último, Lula não hesitou em dizer, durante uma entrevista, que enquanto esteve preso costumava pensar: “Só vai estar bem quando eu f**** esse Moro”.
Ainda assim, o presidente já mostrou que não exime a PF de responsabilidade pelo seu período na cadeia. Logo no começo deste terceiro mandato, em janeiro, Lula recebeu reitores de universidades federais no Palácio do Planalto. Fez questão de mencionar o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Luis Carlos Cancellier Olivo. Em 2017, Cancellier foi alvo da Operação Ouvidos Moucos, sobre supostos desvios de recursos públicos na UFSC. Preso temporariamente e depois proibido de sequer pisar na universidade, matou-se. A investigação jamais chegou a comprovar que ele houvesse cometido crimes. Quem estava à frente do caso era a delegada Érika Marena, que batizou a Lava Jato. Especializada em crimes financeiros, ela deixou Curitiba quando o petrolão ainda estava no auge e foi trabalhar no Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, em Brasília. Em 2020, depois que Sergio Moro deixou o governo Bolsonaro, Marena foi exonerada e transferida para uma delegacia de combate ao tráfico de drogas.
A história de Cancellier, que teve um desfecho trágico sem produzir provas cabais de corrupção, é usada pelo PT e seus aliados como símbolo de dos “excessos” da PF na Lava Jato. Nesta semana, o ministro da Justiça, Flávio Dino, voltou mencioná-la, comentando o arquivamento pelo Tribunal de Contas da União de uma representação sobre as supostas ilegalidades na UFSC. Dino disse nas redes sociais que iria adotar “providências cabíveis em face de possíveis abusos e irregularidades na conduta de agentes públicos federais”.
Crusoé procurou três delegados que atuaram na Lava Jato, mas nenhum deles quis se manifestar publicamente. Eles temem retaliações. “A gente vive um momento de caça às bruxas”, diz um deles. “Acabaram com as frentes de combate à corrupção e depois foram para cima do Ministério Público, do Judiciário. Por que não viriam atrás dos delegados e outros agentes da PF?”
Outro delegado afirma que a Lava Jato é criticada por supostamente flexibilizar procedimentos, mas que hoje a flexibilização de leis e regras vem de instâncias mais altas, “em nome da defesa da democracia”. “São procedimentos que podem se voltar contra qualquer um, algo que nunca aconteceu na Lava Jato”, diz ele.
O tipo de relacionamento que Lula e seu governo pretendem estabelecer com a PF ainda suscita interrogações. Depois de desautorizar o Diretor Geral Andrei Passos no episódio que envolveu Sérgio Busato, como relatado acima, o presidente o convidou, recentemente, para viajar com ele. Enquanto isso, Flávio Dino tem deixado vazar informações sobre inquéritos em andamento, como registrou o jornal Folha de S. Paulo nesta semana. No final de junho, Dino disse que em breve haveria “novidades” em relação ao caso Marielle Franco. Semanas depois, a PF prendeu um dos suspeitos de ter envolvimento direto no assassinato da ex-vereadora.
A prova de que o clima na PF é de apreensão vem de uma nota pública divulgada pela Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF) em defesa da autonomia funcional e investigativa da categoria, reforçando que a atuação da PF é embasada nas leis e na Constituição.
“Não existe compromisso dos Delegados Federais com a acusação ou com a defesa, mas sim com o sistema de justiça criminal, entendido como um todo”, diz um trecho do documento.
“É inaceitável o estabelecimento de quaisquer rótulos sobre os profissionais atuantes na polícia judiciária, independentemente da ocupação de funções e cargos públicos em governos anteriores ou da coordenação de grandes operações policiais”, diz outra passagem. Sim, é inaceitável.
Créditos: Crusoé.