A perita criminal Bárbara Suelen Coloniese inspecionava um presídio no interior do Rio Grande do Norte quando decidiu conversar com um rapaz em isolamento. Ao colocar a cabeça dentro da cela, conta, deu dois passos para trás, impactada pelo forte cheiro que vinha lá de dentro.
Aquele odor que, segundo ela, lembrava o de um animal morto, era o resultado de um abandono estatal. O rapaz, negro e sem família, estava isolado havia 39 dias sem receber nenhum item de higiene pessoal ou para limpeza da cela. Recebia apenas comida e água.
“Estava todo descabelado, barba por fazer. Ele falou: ‘Pelo amor de Deus, me arruma um pouquinho de pasta [de dente] e um pedacinho de sabonete?’ Fico arrepiada só de lembrar”, disse ela, integrante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão de peritos responsável pela prevenção a esse tipo de crime.
O flagrante da equipe está no relatório divulgado neste ano pelo órgão sobre as condições de presídios do RN. Outro exemplo dessa situação, que consta do mesmo relatório, foi encontrado na Penitenciária de Alcaçuz, também no RN, local do massacre de 26 presos em 2017. A direção da unidade, conforme o documento, proibiu o uso de papel higiênico pelos presos, sob a alegação de segurança.
“Há uma expressa proibição da utilização de papel higiênico pelos custodiados com a inaceitável justificativa de que podem utilizá-lo como massa para ocultar algum buraco, assim como os livros”, diz trecho do relatório.
Familiares de presos internados em Alcaçuz ouvidos pela Folha no dia 24 confirmaram essa proibição. Dizem que teve início há cerca de dois anos e ainda continua. Outra explicação para o veto seria a possibilidade de enviar bilhetes escritos nessas folhas.
O governo do RN diz ter comprado material de higiene e nega o veto ao papel no sistema (leia mais abaixo).
Essa suposta proibição, relatada de forma unânime pelos presos, ocorre em um ambiente onde a água é liberada apenas três vezes ao dia e a população sofre com uma rotina de diarreia, conforme registraram as peritas no documento.
“A duração varia entre 20 a 30 minutos e esta água é destinada a: ingestão, higienização das roupas, das celas e higiene pessoal”, diz relatório do Mecanismo.
A restrição de água potável ao ser humano, que pode caracterizar uma forma de tortura, acontece de norte a sul do país, conforme os 24 relatórios produzidos pelo órgão, analisados pela reportagem. Outra situação que se repete é a escassez dos itens de higiene, geralmente fornecidos pelas famílias ou adquiridos pelos presos, com recursos próprios, em mercadinhos montados dentro de presídios.
A falta de água em algumas unidades leva os internos a situações desumanas e ao risco de graves doenças. Em um presídio do Pará, em 2019, e em um outro no Sergipe, em 2022, o Mecanismo encontrou relato de presos que diziam ser obrigados a beber água de vaso sanitário para matar a sede.
“Não há água potável nas celas. Há apenas um cano de água, usado para consumo e para higiene”, diz trecho de documento sobre o Sergipe.
No Acre, em abril de 2020, os presos fizeram “bate-grade” em protesto contra falta de água que durava três dias. A situação, conforme relatório, foi interpretada como uma rebelião, e agentes de um grupo de intervenção foram acionados e “já entraram nas celas atirando mesmo com os presos em posição de procedimento”. Mais de 50 detentos foram feridos nessa intervenção, alguns com lesões permanentes.
No Amapá, em 2020, a equipe de peritos encontrou uma unidade prisional em que a água servida aos presos era imprópria para o consumo porque a caixa-d’água ficava aberta e exposta a contágio. “Há animais como urubus que se banham ali, e a água chega suja e imprópria para o consumo”, diz.
Nessa unidade, as mulheres presas classificaram “a dificuldade de água para a realização da higiene feminina como algo degradante”. Em uma cela com oito detentas, eram distribuídos mensalmente quatro pacotes de absorventes e quatro rolos de papel higiênico para serem divididos entre elas.
Em alguns locais, como no Distrito Federal em janeiro deste ano, o Mecanismo encontrou os absorventes tão finos que pareciam um guardanapo.
ESTADOS NEGAM BARRAR ACESSO A ÁGUA E ITENS DE HIGIENE
Procurados para comentar os problemas de acesso a água, os governos de Sergipe e do Amapá não responderam até a publicação deste texto.
Sobre o preso sem produtos de higiene, o governo do RN afirmou que, desde maio deste ano, iniciou a distribuição mensal de cerca de 8.000 kits de “higiene, limpeza, uniformes, chinelos, colchões e lençóis para todos os privados de liberdade”. “Os kits serão fornecidos regularmente, dispensando o custeio por parte dos familiares”, diz nota.
Sobre a restrição de água nas unidades de Ceará-Mirim e Alcaçuz, a Secretaria da Administração Penitenciária confirma haver um “controle no fornecimento de água”, mas nega “que internos não têm acesso a água para beber”. A pasta também nega falta de acesso dos presos a papel higiênico e livros.
Já o Governo do Pará informou que as denúncias apontadas pelo MNPCT, de 2019, de presos bebendo água em privadas, foram investigadas, mas não confirmadas.
“A Seap ressalta que não existe nenhum problema de abastecimento de água em nenhuma das 53 unidades prisionais do estado, e que o fornecimento de água para os custodiados ocorre regularmente, assim como a oferta de materiais de higiene pessoal”, diz nota.
O governo do Acre informou que ainda está em curso a investigação sobre a ação contra presos em 2020. Diz que a unidade sofria problemas de abastecimento de água, assim como toda a cidade em razão de seca severa na região. A mesma unidade passa atualmente por reformas e o controle de água se deve a um problema de abastecimento de água que afeta todo o estado, historicamente.
O governo do Distrito Federal diz que periodicamente são distribuídos itens de higiene, entre eles dois pacotes de absorventes e dois rolos de papel higiênico, ambos com reposição mensal. O estoque é complementado com doações e levado pelas famílias.
Folha de SP