No dia 2 de novembro de 2014, muito antes de sonhar com o Supremo Tribunal Federal (STF), o então desembargador Kassio Nunes Marques abriu o caderno de classificados de um jornal em busca de uma surpresa para sua mulher, Maria do Socorro — à época, assessora do então senador e atual ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT).
Em uma das tripinhas de anúncios, em letras miúdas, encontrou o presente perfeito: um modesto Renault Fluence do ano anterior, anunciado por R$ 55 mil. Ligou para o número de celular do anunciante, George, e pediu para que ele levasse o carro na manhã seguinte à sua casa, no Lago Sul, em Brasília – imóvel funcional do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
O carro tinha uns arranhões na parte de trás, e deu para negociar: acabou saindo por R$ 51 mil, em espécie. Em valores atualizados, R$ 84 mil. O problema é que George não era o nome real do vendedor, o carro era roubado e foi apreendido quando o magistrado já havia dado o presente para a mulher.
A história inusitada sobre a surpresa de Kassio à esposa que acabou estragada por bandidos estava no arquivo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e foi obtida pelo Metrópoles, a partir do desarquivamento de 2.102 páginas de processos. Esses papéis possibilitaram a reconstituição do curioso episódio envolvendo o magistrado.
O carro chegou a ser entregue por Kassio e sua esposa à polícia. Em depoimento, o atual ministro do STF afirma que não havia qualquer restrição nos documentos do carro quando o comprou, e que “tomou conhecimento de uma restrição” sobre o veículo “lançada na base nacional, em março de 2015″.
A polícia e o Ministério Público não se manifestaram sobre as circunstâncias da apreensão do veículo para vistoria. O carro acabou liberado de volta para o magistrado e a sua esposa.
Sem foro
O veículo estava em nome de Maria do Socorro, mas quem se apresentou para esclarecer os detalhes da aquisição às autoridades foi o então desembargador, no dia 31 de março de 2015. Em depoimento, Kassio disse que compareceu à polícia “espontaneamente, inclusive abrindo mão de suas prerrogativas”, o foro privilegiado.
O então desembargador entregou aos policiais uma edição do jornal com o anúncio do carro. Também deu a eles um recibo simples de quitação da compra do veículo registrado em cartório, assinado pelo vendedor, que dizia:
“Recebi da Sra. Maria do Socorro Mendonça de Carvalho Marques a quantia de R$ 51.000,00 (cinquenta e um mil reais) pela venda de um veículo marca Renault, modelo Fluence Dyn20A, ano/modelo 2014/2014, cor preta, Placa FRM-7633, Renavam 01005027967, pelo que dou plena e total quitação, resguardando-a de despesas, que porventura existam, relativas a multas de trânsito e outras congêneres até esta data”.
Kassio contou como barganhou o preço do carro e se dirigiu com o vendedor ao cartório para fazer o reconhecimento de firma das assinaturas. Segundo o ministro, sua mulher “não teve qualquer contato com a pessoa de George, salientando que a aquisição do veículo seria uma surpresa que o declarante pretendia fazer”.
“Dinheiro não foi exigência”
A parte do depoimento em que o ministro admitiu a compra do automóvel foi registrada nestes termos pela polícia: “Que no mesmo dia o declarante realizou o pagamento em espécie a George; Que o pagamento em dinheiro não foi uma exigência dele, mas afirmou que preferia”.
Kassio ainda afirmou aos policiais que, após a transação, deu uma carona ao tal George para a feira dos importados, em Brasília. Depois disso, nunca mais se viram. Também disse que, da maneira que lhe foi apresentado, o carro não tinha sequer registro de ocorrências. Ao desembargador foi apresentada uma foto de “George”. Pela polícia, ele descobriu que o verdadeiro nome do vendedor era Roberto Willian de Ataídes.
O esquema
Ataídes foi alvo de uma operação policial deflagrada contra uma quadrilha que alugava veículos em locadoras de diversos estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, e desaparecia com eles. Os veículos eram transferidos para o nome de terceiros com o uso de documentos falsos — o esquema tinha a ajuda e a vista grossa de funcionários do Detran de diferentes estados.
O próprio criminoso confessou os crimes às autoridades. Disse que o nome “George” era usado para fazer a venda dos veículos e que trabalhava havia anos com carros roubados. Até a conta em banco ele tinha com o nome fictício.
Na peça de acusação feita pelo MPDFT contra os criminosos, são descritos cada um dos episódios de desvios e venda dos carros. Os compradores — todos vítimas — foram apenas arrolados pelos promotores como testemunhas da acusação. O mesmo não aconteceu com Kassio e sua mulher. A denúncia que levou à condenação dos criminosos foi feita no dia 20 de março, 15 dias antes do depoimento do então desembargador. Não houve aditamento da peça à Justiça pelo MPDFT para incluir o caso do magistrado.
Ficou fora
Nas mais de 2 mil páginas de inquéritos anexados à ação penal contra os criminosos, a existência do depoimento do ministro é citada apenas uma vez, de passagem, em um memorando da Polícia Civil que fazia menção às capas de documentos do inquérito, como interrogatórios e apreensões.
O depoimento do desembargador à polícia foi obtido pelo Metrópoles porque a mulher do ministro anexou o documento em um processo à parte, em que pediu à Justiça para ficar com o carro, por ter comprado o veículo de boa-fé.
O pedido teve parecer favorável do Ministério Público, e a locadora de São Paulo da qual o veículo foi desviado aceitou que o carro ficasse com a mulher do desembargador, desde que indenizada por ela. O carro acabou ficando com Maria do Socorro, e a história virou mais papel nas pilhas do arquivo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
Procurado pelo Metrópoles para falar sobre o caso, o ministro Kassio Nunes Marques não se manifestou até o fechamento da reportagem.
Créditos: Metrópoles.