Uma das prioridades do presidente Luiz Inácio Lula da Silva há 200 dias, desde que seu terceiro mandato começou, é pôr a política externa de volta nos rumos históricos, após quatro anos de descarrilamento. Desde então, foram recordes dez viagens ao exterior, passando por 15 países e quatro continentes. O retorno à cena internacional, contudo, coabita com saias-justas que vão da Venezuela à guerra na Ucrânia, razão de desconfortos entre o petista e o presidente do Chile, o também esquerdista Gabriel Boric.
Lula chegaria nesta quarta à noite da cúpula entre a União Europeia (UE) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em Bruxelas, após fazer uma escala em Cabo Verde, que apesar da brevidade foi suficiente para gerar polêmica. A viagem inaugural de Lula, em janeiro para Buenos Aires, havia sido para marcar seu retorno à Celac, do qual o então presidente Jair Bolsonaro havia tirado o Brasil em 2019.
Com pouco mais de seis meses no poder, Lula passou cerca de 36 dias, ou 18% do tempo no exterior. No mesmo intervalo, Bolsonaro foi a seis nações, quase todas com governos aliados, incluindo sua viagem inaugural para o Forum Econômico Mundial, na suíça Davos, onde seu discurso que consumiu menos de sete dos 30 minutos alocados foi visto como um fiasco.
Lula também dá suas escorregadas, principalmente nas geralmente longas entrevistas coletivas que dá ao fim de cada viagem. A coletiva desta quarta, na Bélgica, não foi exceção.
Boric criticara na terça-feira as negociações sobre a declaração final da cúpula porque “alguns não querem dizer que a guerra é contra a Ucrânia”. Em sua mira estavam países latino-americanos que impediram uma menção à Rússia e sua “guerra de agressão imperialista” contra o país de Volodymyr Zelensky. Tendo o chileno como alvo, Lula afirmou que, quando era mais novo, tinha “pressa” tal qual o colega, mas que com o tempo aprendeu que há muitos interesses em jogo:
— Eu não tenho por que concordar com o Boric, é uma opinião dele. Foi extraordinária a reunião. Provavelmente a falta de costume de participar dessas reuniões faz com que um jovem seja mais sequioso, mais apressado, mas as coisas acontecem assim — afirmou ele.
Nesta quarta-feira à tarde, Boric rebateu, após reiterar “respeito infinito e carinho por Lula”
— Temos que ser muito claros ao dizer que esta é uma guerra de agressão inaceitável — disse. — Nenhuma potência pode passar por cima do direito internacional.
Recuo sobre Venezuela
As divergências entre a dupla também se estendem à Venezuela, frente às diversas declarações e acenos de Lula que foram entendidos como pró-Caracas. Com uma boa relação histórica com o chavismo, o presidente recebeu o presidente Nicolás Maduro em Brasília em maio, para um retiro de chefes de Estado na região e afirmou que a Venezuela é “vítima” de “uma narrativa de antidemocracia e autoritarismo”.
Entre os críticos domésticos e internacionais estava Boric: as violações dos direitos humanos no país de Maduro, disse ele, “não são uma construção narrativa”, mas sim uma “realidade”. Frente à péssima repercussão, Lula recuou na cúpula desta semana e sentou-se pela primeira vez com representantes da oposição e do governo da Venezuela, em um encontro organizado pelo presidente francês, Emmanuel Macron, que reuniu também o colombiano Gustavo Petro e o argentino Alberto Fernández.
O grupo defendeu que os venezuelanos cheguem a um acordo sobre a data e as regras para as eleições do ano que vem, condições para que haja “autoridade moral” de demandar o fim das sanções “absurdas” americanas, disse Lula. Para o petista, os venezuelanos “estão cansados (…) após tanto tempo de briga” em Caracas. A presença de Lula, na avaliação do Eliseu, mudou a dinâmica das negociações.
Outro impasse regional que causa dor de cabeça para o presidente é o acordo UE-Mercosul, que ficou escanteado na Bélgica diante da dificuldade de avanços significativos. As demandas ambientais no adendo apresentado pelos europeus, vistas como protecionistas pelos sul-americanos, e os termos sobre compras governamentais devem ser rebatidas em uma contraproposta a ser apresentada daqui a “duas ou três semanas”, disse Lula.
A guerra da Ucrânia também é uma fissura entre brasileiros e os europeus, com o presidente se recusando a aderir à enxurrada de sanções e a enviar armas para Kiev. Apesar de ter votado na Assembleia Geral da ONU para condenar a Rússia pela invasão, o Brasil adota uma posição de neutralidade no conflito, projetando-se como um possível mediador e vendendo a ideia de um clube da paz de nações sem interesses na disputa.
O desencontro de Lula e Zelensky durante a passagem dos dois pelo Japão na cúpula do G7, para a qual foram convidados, levantou dúvidas sobre a capacidade brasileira de fazer tal articulação, apesar de o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, ter visitado Moscou e Kiev. Meses antes, em abril, declarações do presidente brasileiro equiparando país invadido e invasor e culpando o Ocidente por prolongar a guerra geraram respostas da Casa Branca e de aliados europeus. Desde então, a retórica brasileira também recuou.
Os impasses, no entanto, caminham ao lado de uma reinserção brasileira na política regional e na cena internacional. Lula foi aos EUA em fevereiro, em um gesto de agradecimento pelo rápido reconhecimento do resultado da eleição do ano passado, e para discutir o fortalecimento da democracia duas semanas após ambas nações serem alvos de ataques golpistas. Dois meses depois estava na China, maior parceira comercial do Brasil, onde foi recebido com pompas por Xi Jinping, fez uma defesa da desdolarização e despertou críticas de que estava dando primazia a Pequim nas disputas geopolíticas com os americanos.
Créditos: O Globo.