Pouco mais de cinco meses após o governo federal decretar emergência em saúde pública na Terra Indígena Yanomami, a situação de desassistência sanitária das aldeias segue dramática e com o mesmo padrão de mortes dos anos anteriores. Em 2023 já foram registrados 129 óbitos de indígenas na região, sendo que 56 (43,4%) se trata de crianças menores de quatro anos, como mostra o informe mais recente do Centro de Operações de Emergência (COE) Yanomami, do Ministério da Saúde, divulgado no último sábado (24).
Doenças infecciosas (pneumonia, malária e tuberculose) são as principais causas das mortes, mas a desnutrição segue em patamares bastante elevados – foram 16 mortes até aqui por esse motivo.
A título de comparação, ao longo de 2022 foram contabilizados 209 óbitos, enquanto em 2021 foram 249. A se manter os números até aqui, ao final deste ano o número de mortes ultrapassaria a média dos anos de 2018 a 2022 (excluindo 2020, auge da pandemia da Covid-19, quando o número de óbitos foi impactado pelo vírus), que é de 238 ao ano.
Os números apontam para uma dificuldade muito maior do que a esperada pelo governo Lula para reverter um quadro sanitário grave que assola os yanomami há vários anos – como mostrou reportagem da Gazeta do Povo, dados desfavoráveis em relação à mortalidade de indígenas yanomami são comuns em todos os governos desde os anos 2000.
Apesar disso, no início do mandato o governo Lula explorou amplamente a crise na região para desgastar a imagem do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e valorizar a atual gestão. Além do presidente Lula (PT), o ministro Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública, chegou a usar o alto número de mortes entre yanomamis para sugerir que haveria um genocídio em curso por parte do governo anterior.
Na Câmara, deputados do PT protocolaram uma representação criminal no Ministério Público Federal (MPF) contra Bolsonaro na qual alegaram que haveria uma “política de extermínio dos povos Yanomami e de outras comunidades indígenas conduzida com galhardia e prazer pelo ex-presidente da República”.
Ainda em fevereiro, após Flávio Dino pedir investigação sobre o caso, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a abertura de uma investigação de autoridades do governo Bolsonaro por suposta prática de genocídio de indígenas yanomami.
Governo Lula explorou crise yanomami para desgastar Bolsonaro
No início de 2023, imagens de indígenas em situação grave de desnutrição e enfermidades na Terra Yanomami multiplicaram-se nas redes sociais e trouxeram forte comoção social, em especial porque grande parte dos casos se tratava de crianças menores de cinco anos. O alto número de indígenas contaminados por malária e com outras doenças, como pneumonia e diarreia aguda, também ganhou as manchetes dos jornais.
Uma reportagem de um site de notícias ambientais crítico do governo anterior, com fotos diversas de indígenas em situação precária, foi o que atraiu o interesse do governo e da imprensa para a situação dos yanomamis. O site narrava que durante o governo Bolsonaro, 570 crianças yanomami com menos de 5 anos morreram no território por “mortes evitáveis”, isto é, preveníveis pela atuação dos serviços de saúde.
No entanto, a necessária atenção do Executivo à grave situação das aldeias misturou-se a uma forte investida de autopromoção do governo Lula e de desgaste político de Bolsonaro. No dia 22 de janeiro, um dia após visitar Roraima, Lula chamou de “genocídio” a situação dos yanomamis, disse que a tragédia dos indígenas foi um “crime premeditado” cometido “por um governo insensível ao sofrimento do povo brasileiro” e citou a transmissão da malária como uma das principais causas desse genocídio.
Dias depois, o governo Lula demitiu dezenas de servidores da Funai que estavam desde a gestão anterior. O governo também aproveitou para estabelecer medidas polêmicas, como a proibição do exercício de quaisquer atividades religiosas junto aos povos indígenas, bem como o uso de roupas com imagens ou expressões religiosas – medida apontada por juristas como inconstitucional e eivada de intolerância religiosa.
Para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o alto número de mortes de yanomamis em 2023 não aponta para um “genocídio” em curso por parte do governo Lula, da mesma forma como não houve cometimento desse crime durante a gestão Bolsonaro.
“É um problema muito maior do que o atual governo achava que era. Mesmo com as ações anunciadas, o número de mortes não diminuiu e infelizmente não vai diminuir, porque esse não é um problema de falta de atenção de um governo, é um problema crônico que se arrasta por muitos anos, por diferentes causas”, diz Samuel Souza, ex-diretor de proteção ambiental do Ibama, que atuou diretamente em operações de combate ao garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami.
Garimpo ilegal, crime organizado e dificuldades de acesso tornam reversão do cenário mais desafiadora
O estado de desassistência sanitária enfrentado pelos yanomamis é reflexo de causas diversas, que passam pela dificuldade de acesso do poder público nas aldeias; pelo garimpo ilegal, com consequências diretas à saúde dos indígenas; pela presença de facções criminosas na região; e por hábitos culturais dos yanomami comuns a outras etnias, como o nomadismo e a menor priorização de crianças na distribuição de alimentos, já escassos na região.
Em relação às dificuldades de acesso, a Terra Yanomami possui quase 100 mil quilômetros quadrados em área de floresta e rios, onde estão 31 mil indígenas. O espaço é equivalente a quase 40% da área do estado de São Paulo e é maior do que vários estados brasileiros, como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Paraíba. A área ocupa parte dos estados de Roraima e Amazonas, na região Norte do país, e faz fronteira com a Venezuela.
O acesso à maior parte das 376 aldeias para distribuição de medicamentos e alimentos é bastante desafiador e precisa ser feito de avião, o que faz com que os insumos não cheguem na quantidade e no tempo necessários. Além disso, o hábito de várias tribos indígenas de não permanecer muito tempo no mesmo local torna ainda mais difícil o acompanhamento desses grupos pelo poder público.
Outro problema crítico enfrentado pelos yanomamis, os quadros generalizados de desnutrição têm agravantes que transcendem as dificuldades de acesso pelo governo para entrega de mantimentos. Aspectos culturais dos yanomamis estabelecem que os homens jovens são os primeiros a se alimentar, seguidos pelos anciãos que comandam a comunidade. Depois vêm as mulheres que trabalham e os idosos sem posição de liderança, e por último as mulheres que não trabalham e as crianças.
“A alimentação deles já é escassa e fraca em nutrientes, e o fato de as crianças serem as últimas da fila as deixa em situação muito difícil. Além disso, entre as mulheres que não trabalham estão as grávidas, então a criança yanomami já tem uma gestação com uma genitora que possui déficit alimentar”, explica o ex-diretor do Ibama.
Já o garimpo ilegal, mais um problema crônico da região, é responsável por prejuízos diversos às populações locais, sobretudo devido à contaminação dos rios pelo mercúrio utilizado para separar o ouro do cascalho. Como consequência, o consumo de peixes pelos yanomami resulta em altos níveis de contaminação por mercúrio.
Mas a atividade do garimpo ilegal tem um agravante: facções criminosas, como PCC e Comando Vermelho, comandam essas atividades e aliciam os próprios indígenas para trabalharem no garimpo, ou oferecem itens como armas, álcool e drogas em troca da permissão para atuarem na área sem a resistência da população local.
Para piorar o cenário, a presença do crime organizado na região não tem a ver apenas com o garimpo: a região é estratégica para o envio de drogas ao exterior e a importação de armas. “A rota do tráfico, que saía da Colômbia e vinha para Manaus, depois Fortaleza ou Belém até seguir para a Europa, subiu. Agora é Colômbia, Venezuela e Terra Yanomami, saindo por Suriname e Guiana. As facções têm uma infraestrutura logística de apoio que precisam manter, por isso não deixam o local”, afirma Samuel Souza.
“O governo diz que está zerando o garimpo, mas não é verdade. Isso é impossível, porque não são só garimpeiros, são traficantes com armamento pesado que não querem sair. O problema lá é uma situação de guerra. Enquanto não houver uma intervenção federal séria para desocupar esses locais não resolve”, prossegue.
Líder yanomami diz que governo prioriza apenas uma região e que imprensa abandonou a cobertura
Desde o início da força-tarefa, o governo concentra esforços em aumentar a distribuição de alimentos e medicamentos e ampliar o atendimento médicos aos indígenas – até agora foram realizados cerca de 25 mil atendimentos nos polos-base de saúde distribuídos pela região, segundo o Ministério da Saúde. Em paralelo, há ações coordenadas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) para afastar os garimpeiros da região.
Em 22 de junho, o ministro Flávio Dino afirmou que órgãos de repressão da força-tarefa destruíram 323 acampamentos de garimpo e 151 balsas garimpeiras desde janeiro. O governo acredita que houve redução de 90% do garimpo ilegal na Terra Yanomami.
No entanto, há insatisfação por parte dos indígenas, que apontam que há concentração dos serviços de assistência do governo na área indígena de Surucucu, localizada em Roraima, enquanto as demais regiões permanecem em situação semelhante a antes do início da força-tarefa. A morosidade do governo em combater o crime organizado também é questionada.
“O número de óbitos que se mantém alto como antes mostra que não está havendo ação de saúde que atenda às necessidades das nossas aldeias”, diz Alberto Brazão Goes, liderança yanomami e ex-presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi). “Essa coordenação emergencial deveria seria ampla, nos dois estados, mas estão focando na região de Surucucu. Lá sim, aliviou bastante. Mas os óbitos, principalmente de crianças, continuam subindo porque outras regiões do território yanomami continuam esquecidas”, lamenta.
A falta de assistência nas demais localidades motivou uma decisão da Justiça Federal, proferida no último dia 19, que determinou que o governo Lula reduza a vulnerabilidade social de indígenas amazonenses que fazem longas jornadas até as cidades em busca de benefícios sociais, em condições de insegurança alimentar e com risco de morte. A juíza afirmou que o governo deve atuar para evitar a fome dos indígenas, garantir a solução imediata das demandas e assegurar apoio logístico nas aldeias.
“O governo explorou esse alarme que houve nas nossas terras, mas ficou no uso político. Na minha comunidade, Maturacá, com mais de três mil yanomamis, faltam medicamentos, faltam profissionais, faltam insumos. Eu, que tenho pele yanomami, fico revoltado. É só manobra para a mídia elevar um governo. Agora até a imprensa esqueceu do assunto”, declara Alberto Goes.
Outro lado
A Gazeta do Povo enviou à Funai, ao Ministério da Saúde e ao Ministério dos Povos Indígenas questionamentos sobre a situação dos yanomami e a força-tarefa do governo Lula. A Funai enviou um link que direciona para notícias de ações do órgão na região, mas não respondeu às perguntas. Já as pastas da Saúde e dos Povos Indígenas não enviaram nenhum retorno até o fechamento desta reportagem.
Gazeta do Povo