Foto: Reprodução
O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou nesta semana o julgamento do Marco Temporal das Terras Indígenas. O tema estava parado desde 2021 após o ministro Alexandre de Moraes pedir mais tempo para analisar o caso. Na retomada do julgamento, Moraes votou contra o marco, enquanto o ministro André Mendonça pediu vista. A Corte deverá voltar a analisar o tema em 90 dias e decidir se a data da promulgação da Constituição vai servir como um marco no tempo para a demarcação de terras aos índios. Na prática, se o Marco Temporal for mantido, valerá a regra de que só pode ser demarcada como indígena uma terra em que esses povos ocupavam até 5 de outubro de 1988. Em Cunha Porã (SC), agricultores temem perder as terras caso o Marco Temporal deixe de existir. Isso porque a área poderá virar terra indígena. Segundo Cristian Lassig, filho de agricultores da região, cerca de 200 pequenas famílias poderão ser atingidas. Confira a conversa que tive com ele:
Há risco de a demarcação indígena se sobrepor à área de produção agrícola onde vive a sua família e a família de muitos conhecidos seus?
A área aqui de Cunha Porã e Saudades está sendo pleiteada desde os anos 2000. Então, agora no mês de junho, vai fazer 23 anos que estamos nesse conflito. A nossa situação já foi ganha em duas instâncias, o nosso processo é todo baseado em cima do Marco Temporal. A nossa propriedade inteira está dentro dessa possível demarcação e nós corremos o risco de perder as nossas terras, assim como outras famílias de amigos e conhecidos que estão ao nosso redor. E o que mais preocupa a nós também, além de perdemos nossa fonte de renda, é a questão do nosso município. São dois pequenos municípios que podem acabar sumindo do mapa. A área pleiteada é, em comparação com a área do município, enorme, então acaba afetando muito a economia regional.
Há quanto tempo vocês estão nessas terras? Todos os agricultores que estão na região possuem o título de posse das terras?
Sim, a área da nossa família é de segundo dono. O meu tataravô chegou nessa terra e a passou para o meu bisavô. Eles estão aqui desde 1954. Existem famílias que já estão há mais tempo na cidade. Em Cunha Porã, já tinha chegada de imigrantes desde 1930, onde documentos da época não relatam a presença de nenhum índio. Então, são propriedades que daqui a pouco tempo vão ser centenárias e temos que passar por uma situação como essa, na qual querem derrubar esse Marco Temporal, querem dizer que isso não vale. O que mais preocupa é que as nossas escrituras não valem nada perante isso, com datações bem anteriores à homologação da Constituição. Para eles, não vale muita coisa, então isso é o que mais preocupa a nós.
Eu lembro de ouvir você dizendo durante audiência pública em Santa Catarina que, todas as vezes em que agricultores da sua região se reuniam, a conversa sempre acabava com uma última questão, que era: “O que será de nós se perdemos as nossas terras?”. O sentimento continua sendo esse?
Sim, ainda mais com a questão do julgamento do Marco Temporal. Nós, até a semana passada, estávamos conversando entre vizinhos, e um senhor com mais de 70 anos de idade, quase chorando, pois não sabia o que iria fazer. E não é só uma situação, são mais de 200 famílias que são afetadas. Nelas há adultos, crianças, idosos, pessoas que muitas vezes nasceram e cresceram ali, e que se tiverem que sair, vão ficar a “Deus-dará”. Então, elas não vão ter para onde ir. Não se tem algo falando: “Não, vocês vão sair daqui e vão para ali”. É simplesmente: “Vocês vão ter que pegar as suas propriedades, dar um jeito de desmontar e sair”. Você imagina falar isso para uma pessoa que tem lá seus 80 anos de idade, nasceu, cresceu, desenvolveu toda a sua família, construiu todo o seu patrimônio naquele local. Como você acha que uma pessoa se sente, né? É triste você conversar e ver os jovens querendo sair daqui, não querendo continuar por medo dessa questão.
Qual é o sentimento hoje dos seus pais e vizinhos? O que eles sentem quando veem as notícias sobre Marco Temporal? Eles sentem que a população brasileira conhece a versão, por exemplo, de vocês, pequenos agricultores, que estão com esse nível de preocupação por causa do tema?
Infelizmente, nós vemos que a população brasileira, no geral, não tem um conhecimento muito específico sobre essa questão, em especial também a nossa questão aqui. Então, é triste você, por exemplo, conversar com seus pais e ter que deixar de fazer investimentos no longo prazo, pois tem um sentimento de insegurança. Meus pais tratam de problemas depressivos há muitos anos já, decorrentes dessa questão. Então, eu agradeço novamente, pois essas reportagens são nossa voz para o Brasil, para nós tentarmos explicar um pouco da nossa realidade. Aqui nunca teve índio. Você fala assim para pessoas que deram suor, deram sangue para desbravar essas terras, que compraram honestamente, tiveram que abrir matas para conseguir tirar seu sustento, colocar uma propriedade funcionar e agora, de uma hora para outra, querer tirar tudo isso sem mais nem menos. É uma situação que deixa muita gente com problemas de saúde, psicológicos. É uma coisa muito triste, é muito, muito triste mesmo você sair, conversar com alguém e em poucos minutos a conversa já toma esse lado né? Infelizmente.
Você tem fé que o Marco Temporal vai passar no Congresso brasileiro ou que o STF vai decidir pela manutenção? Qual é a mensagem que você gostaria de deixar aqui falando em nome dessas centenas de agricultores?
Eu penso muito que talvez os nossos ministros eles consigam se sensibilizar um pouco, pois nós, pequenos produtores que estamos aqui nessa área, e tantas outras pessoas que podem ser afetadas com a derrubada do Marco Temporal, que eles se sensibilizam e pensem em nós, pensem que existem famílias, existem pessoas que dependem da permanência desse Marco Temporal, também por uma questão de segurança jurídica no nosso país. Mas nós estamos muito confiantes, esperamos que os nossos representantes tomem a decisão correta e deixem as coisas como estão, continuem com o Marco Temporal, pois assim poderemos começar novamente a investir, gerar desenvolvimento na nossa região e assim ter um país de prosperidade.
Como é o estilo de vida aí? O que vocês produzem?
A região de Cunha Porã é uma região de propriedades familiares, então a gente trabalha muito com mão de obra familiar. Aqui em casa sou eu, meu pai, minha irmã e meu cunhado. Então, nós produzimos especificamente aqui leite e um pouco de grãos. Mas no geral, a região consiste na produção de cereais, madeira, também tem produção muito forte de suínos e aves. Nós temos um sistema cooperativista muito forte na região que incentiva essa produção agrícola. Nós aqui produzimos o que nós conseguimos produzir, então toda a questão de carnes, cereais, enfim, a questão industrial também está começando a se desenvolver muito forte na nossa região. É uma região de propriedades pequenas, de até 20 a 30 hectares, mas que tem uma diversidade de produção muito grande. Um dado interessante é que foi feito um estudo da nossa região, e a área que está sendo pleiteada produz alimentos para aproximadamente 20 mil, 22 mil pessoas. Isso é o dobro da população que a nossa cidade tem. Você vê o tamanho, a força da produção que nós temos.