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Esqueça o Bino de “Carga Pesada”. Os caminhoneiros brutos abriram espaço para as novas ocupantes mais famosas da boleia: as mulheres dos motoristas.
Donas de perfis bombados nas redes sociais, as “cristais” ganharam esse apelido por brilhar na vida de seus parceiros, deixando suas vidas para trás para acompanhá-los nas estradas. Fora delas, o grupo conseguiu fãs por mostrar o lado nada glamouroso da rotina, como transformar o caminhão em casa por até 90 dias seguidos.
Além disso, mesmo passando por rodovias modernas, elas também lutam contra a falta de estrutura para seguir conectadas com o mundo. As duas jovens com quem o UOL conversou não puderam dar entrevistas por telefone devido ao sinal fraco em sua rota.
Josivania Santos Batista, 22, deixou o trabalho como gerente em um posto de combustível para acompanhar o namorado. Há dois anos na estrada, ela conta que gosta de ser “transparente” ao mostrar que sua vida é “sofrida”, mas sem esconder que vê um lado bom na decisão que tomou.
“A gente ia ficar no mínimo 40 dias sem se ver. Então, decidimos que eu ia largar o meu emprego para ir com ele. Nesse tempo, fiquei em casa só umas duas vezes, sempre para resolver coisas de documento. Acho que eu fiquei aí uns 30 dias em casa, até ele dar um outro ‘giro’ e poder me buscar.”
“Ele foi chamado para trabalhar no Natal, meu coração foi ‘por água abaixo'”
Apesar de dizer que gosta da vida ao lado do namorado, Josivania, natural de João Pessoa (PB), confessa que sente saudade da independência que tinha antes de ganhar a estrada. Além disso, o transporte de cargas não respeita agendas pessoais, obrigando o casal a estar longe das pessoas que amam em datas comemorativas importantes.
Eu trabalhava, tinha minha casa, ia para a academia, saía com as amigas, estava com a família toda perto. E aqui é totalmente diferente, você não tem como planejar. Os nossos aniversários, o Natal, passamos na estrada
Josivania
Beatriz Franco, 20, virou “cristal” há três meses. Nesse período, ela e o marido voltaram para casa, no Paraná, apenas uma vez, para uma folga de três dias.
“Nós trabalhamos para uma empresa de Chapecó (SC) e fazemos tanto rota nacional quanto internacional, no Mercosul. Às vezes, se estamos sem carga, esperamos em um posto da própria empresa até sair de novo para outra entrega. É mais fácil voltar para casa se a rota passar perto da nossa cidade, sem urgência de descarga.”
Antes de viajar, a jovem trabalhava como vendedora em uma loja de material de construção. Quando ela e o companheiro se conheceram, ele tinha apenas o sonho de infância de se tornar motorista, mas foi só em dezembro do ano passado que ele conseguiu uma vaga.
Desde a entrevista, os dois já enfrentaram as dificuldades típicas de quem se isola dentro da boleia.
“Ele foi chamado para estar na empresa no dia 26 de dezembro. Nosso coração foi ‘por água abaixo’, pois era fim de ano. Mas, mesmo assim, apoiei, ele arrumou as malas e seguiu viagem para Santa Catarina no dia de Natal.”
Anderson passou nos testes obrigatórios e foi oficialmente contratado. Desde o início, ele sabia que poderia levar a esposa junto.
“Não me via viajando em um caminhão, pois nunca tinha experimentado, mas no final de janeiro ele disse que ia com uma carga para Curitiba e que se eu quisesse seguir viagem com ele, teria de pedir as contas do meu emprego e ir junto.”
No início de fevereiro, ela seguiu de ônibus até onde o marido estava, ganhando ali um novo título, seu “QRA”: “Biazinha”.
O “QRA” é um apelido usado pelos caminhoneiros na comunicação por rádio.
“É a forma de os motoristas se comunicarem e os cristais também já usam esse método. A gente inventa meio que um nome, que combina com a pessoa, e usa esse método QRA, colocando essa ‘sigla’ na frente. Por exemplo, o QRA do meu esposo é Zangado. E o meu Zangada”, explica Josi, sem dar mais detalhes sobre a origem do título que ela e o marido têm.
“A falta de respeito é pior com as esposas”
Além da nostalgia, outro desafio das cristais é lidar com as surpresas que as estradas reservam, principalmente do lado de fora do caminhão.
Com cozinha retrátil, elas costumam fazer paradas estratégias para preparar as refeições no próprio veículo — mas apenas quando o tempo permite.
“Quando chove muitas vezes não conseguimos abrir a cozinha, então temos de pedir comida pela internet, quando dá, ou ir até o posto comprar algo pra comer”, conta Beatriz, que se dedica a ser “dona de casa” sobre rodas.
O improviso da vida nômade também exige que as cristais e seus companheiros lidem com a má vontade de algumas pessoas.
O caminhoneiro não é bem tratado, mas a falta de respeito é pior ainda com as esposas. Quando vamos a algum lugar para carregar ou descarregar, muitas vezes temos de esperar do lado de fora, sem nem uma salinha para você ficar quietinha, com uma TV, alguma coisa assim
Josivania
Ela afirma que, apesar de apreciar a liberdade de correr o mundo ao lado do marido, enxerga uma “prisão” dentro dela, já que os profissionais não definem o próprio rumo e convivem com ofensas.
“Muitas vezes nós somos vistos como vagabundos, mas é a gente que leva sustento, que leva o alimento para os mercados. Mas é aquilo que a gente sempre diz, nós estamos presos nessa liberdade, porque é sim uma liberdade imensa”, afirma.
Os banheiros de posto também são outro inimigo das cristais, desafiando sua rotina de higiene.
Às vezes os banheiros são de graça, mas outros cobram uma taxa de R$ 8 para tomar um banho de 8 a 10 minutos. E nem sempre é quentinho, já tomei muito banho de água fria. Não dá para tomar igual em casa
Beatriz Franco
“Muitos são imundos. Não têm nem porta, o vaso sanitário é quebrado. Pra mim, é um dos maiores pontos de dificuldade”, concorda Josi.
“Se houvesse botão de ‘quero voltar pra casa’, já teria apertado”
Josi e Beatriz têm opiniões diferentes sobre continuar ou não na estrada. Veterana, a primeira diz que não pensa em parar de viajar, apesar da “vida muito sofrida”.
“Eu acho que quem prova uma vez se vicia. Eu sou aquela cristal raiz, porque tem muita cristal que se apaixona mesmo pela estrada e vira motorista também, mas meu ponto forte é só acompanhar meu esposo e aproveitar o máximo que der. Além de ajudar, eu tive a oportunidade de passear, conhecer muitas coisas diferentes, então isso é o lado bom.”
Se eu tivesse um botãozinho do tipo: ‘ah, eu quero ir pra casa’ eu já teria apertado ele umas mil vezes. Porque tem horas que a saudade dói, além da falta de respeito, entendeu? Mas eu não penso em deixar ele viajar sozinho e ficar em casa, não. A gente é uma dupla e a gente trabalha dessa forma. Um ajuda o outro
Josivania
Apesar de não ver essa aposentadoria no horizonte, Josi já adianta que, quando voltar de vez para casa, o marido também deve deixar as estradas.
“Ele mesmo diz que se um dia eu cansar, ele não vai mais, porque já é caminhoneiro há uns 12 anos e viajou muito tempo sozinho. Então, ele diz que larga e vai trabalhar perto de casa”, conta.
Já Beatriz, apesar de ser “caloura”, pretende voltar a ter uma rotina solo muito em breve.
“Eu mesma não digo que me adaptei a essa vida da estrada. Tem dias de luta e dias de glória. Podemos conhecer lugares diferentes, ir para uma praia, ver a neve. Mas, eu, como esposa, preferia meu aconchego de casa, um chuveiro quente, uma cama confortável”, explica.
Eu pretendo voltar a ficar alguns dias em casa para descansar, para ele viajar um pouco sozinho, pois quando a mulher fica enjoada de estar dentro do caminhão, acaba irritando o marido.
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