Foto: Roberto Moreyra/Agência O Globo.
É típico do mercado: depois de um tempo sem atrair interessados, o imóvel à venda tem seu valor reduzido. No caso da cobertura do edifício Tucumã, na Praia do Flamengo, Zona Sul do Rio, o abatimento foi dos R$ 65 milhões cobrados em anúncios de 2021 para os atuais R$ 59 milhões pedidos pela proprietária. Tudo ali é grandioso, do desconto no preço (R$ 6 milhões) às dimensões do tríplex com vista para o Aterro e a Baía de Guanabara — são 3.900 metros quadrados de área —, passando por sua história. Até onde se sabe, o vídeo que oferece um tour virtual pelo apartamento, publicado nas redes sociais, ainda não conquistou potenciais compradores, mas já fez muita gente sonhar acordada.
No seu tempo de criança, Carlos Guinle sonhou de verdade por lá mesmo: membro de uma das famílias de trajetória mais tradicional (e rica) na alta sociedade carioca, ele nasceu em 1971 e viveu no palacete suspenso da Praia do Flamengo até os 8 anos. Com a repercussão do vídeo, publicou um comentário relembrando histórias do lugar que foi sua primeira morada. A partir daí, uma extensa conversa sobre o passado do imóvel veio à tona.
No livro “Os Guinle – A história de uma dinastia”, o historiador Clóvis Bulcão conta que o avô de Carlos, de quem ele herdou o nome, teve a ideia da construção do prédio, concluída em 1941, e mudou-se para o seu apartamento mais suntuoso.
Carlos Guinle, o neto, lembra que, no seu tempo, quem habitava a cobertura era seu tio-avô, o lendário playboy Jorginho Guinle.
— Éramos eu, meu pai, minha mãe e meus três irmãos. Eu tinha meu próprio quarto e até hoje lembro do meu berço. Cada filho morava num andar. Meu pai morava no primeiro. No segundo era o meu tio, conhecido como Baby Guinle, e o Jorginho, na cobertura. A gente assistia filme, tinha uma sala de cinema, fazíamos almoços na piscina. Isso eu lembro bem — diz Carlos.
Os andares do interminável apartamento são interligados por uma escada em forma de caracol, de mármore trazido da Europa, assim como o revestimento travertino (um tipo de mármore) das colunas na portaria do edifício. Lá no alto, o luxo espalha-se por cinco quartos, ambiente com pé-direito de 5,20 metros, salas de jantar, de estar e de jogos, além de piscina, duas saunas, jardim suspenso com árvores frutíferas, bar e adega.
— Praticamente tudo que está ali veio da Europa: as estátuas, mudas de planta, todo o mármore da casa. Eu lembro da torneira dourada do lavabo, que tinha uma ave lindíssima desenhada. A cuba era toda de latão martelado à mão — conta Carlos, sem disfarçar a saudade da bagunça que fazia: — Descia a escada escorregando de pijama até lá embaixo. Meu pai ficava desesperado.
Na rotina da família Guinle, as crianças faziam as refeições na copa: a sala de jantar era exclusividade dos adultos.
— Na sala de jantar aconteciam os negócios, os assuntos eram todos “de adulto”, a gente não participava. As únicas ocasiões em que jantava todo mundo na sala eram Natal e Ano Novo. Depois do jantar, eles iam para o salão fumar charuto, não tinha a ver criança estar com eles — relembra Carlos Guinle.
Celebridades no salão
Festas black tie eram frequentes na cobertura, que tem elevador e garagem privativos. Jorginho recebeu celebridades nacionais e estrangeiras em seus salões — chegou a hospedar o beatle George Harrison, em passagem pelo Rio.
— Era meio hipnótico sentar e conversar com ele. Meu tio era um poço de cultura sobre arte, música. Na década de 40 ele promovia jam sessions por lá, reunia amigos para ouvir um som e beber. Meu avô era muito amigo do (cantor e compositor) Dorival Caymmi, eles fizeram algumas parcerias nesses encontros. “Sábado em Copacabana” foi uma delas — rememora o neto orgulhoso.
Filha de Jorginho, Georgiana Guinle não chegou a morar na cobertura, mas a frequentou durante a infância. Segundo ela, sua mãe, Ionita Salles Pinto, não quis morar na cobertura por achá-la “grande demais”.
— A mamãe era meio refratária à ideia de morar lá, ela dizia que se sentia asfixiada por aquela imensidão, mas eu frequentava a cobertura todos os dias, ia brincar no jardim, que tinha um parquinho completo, e ia nas festas também — conta Georgiana, antes de recordar o folclore local: — Uma estátua gigantesca de mármore no canto do jardim era bem assustadora, apavorava as crianças. Alguns funcionários contavam que viam vultos e até ouviram o piano tocando sozinho.
‘Um imóvel especial’
O tríplex foi vendido para o empresário José Carlos Fragoso Pires na década de 1990 e, hoje, sua viúva busca negociá-lo. O valor, mesmo após o abatimento mais recente, está acima do praticado pelo mercado, na avaliação do corretor Claudio Castro.
— É um imóvel antigo, maravilhoso. O primeiro andar parece um palácio italiano, mas os demais já têm decoração mais dos anos 80 e 90. É importante notar que o andar do terraço já é mais de hoje em dia, dos anos 80, precisa de muita obra. É uma beleza, mas não é o gosto das pessoas hoje em dia. Quem tem recursos para comprar esse tipo de imóvel procura mais na orla de Copacabana, Ipanema e Leblon — avalia.
O corretor faz questão de ressaltar, no entanto, a importância histórica do imóvel.
— É um imóvel muito bom, especial, mas, na nossa opinião, não vale mais do que R$ 20 milhões. Isso não anula a evidência de que se trata de um dos mais emblemáticos endereços da cidade do Rio de Janeiro — analisa Castro. — O fato de não valer esse preço não tira seu mérito, que é o de mostrar que a cidade é viva e guarda uma rica história, atravessada pelas histórias das famílias Guinle e Fragoso Pires, nomes tradicionais da alta sociedade carioca.
Créditos: Extra/Globo.