foto: Agência Brasil
Não se pode retribuir os ataques às instituições por meio da banalização da prisão preventiva
A manutenção da prisão preventiva de Anderson Torres sinaliza que continuamos aprisionados na dicotomia impunidade-abuso. Longe desses dois extremos, o processo penal deve zelar pela correta reconstrução histórica dos fatos apurados, mediante a observância das regras do jogo estabelecidas pela Constituição Federal.
Evidentemente, não se trata aqui de defesa ou negação das condutas imputadas ao então secretário de Segurança do Distrito Federal. Ao contrário, por tudo que tem sido divulgado sobre o caso, há fortes indícios de sua possível atuação nos atos de 08/01. É imprescindível, portanto, que os fatos sejam devidamente apurados sob o crivo do contraditório e da ampla defesa e, uma vez confirmados, sejam rigorosamente punidos nos termos da lei penal.
O que não se pode admitir é a antecipação da punição, deturpando-se a prisão preventiva como tática de responsabilização penal imediata, o que caracteriza ato de barbárie incompatível com o sistema penal constitucional. Não se pode retribuir os ataques criminosos às instituições da República por meio da banalização da prisão preventiva, que em si mesma é também uma grave afronta ao Estado democrático de Direito.
As organizações internacionais têm reiteradamente advertido o Brasil sobre a deturpação da prisão preventiva, que não pode ser manipulada como instrumento de punição antecipada. Tanto a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos humanos) da OEA, quanto a ONU, divulgaram relatórios sobre o sistema de justiça criminal no país, destacando a preocupação com o uso excessivo da prisão preventiva, criticando o fato de que cerca de 40% da população carcerária brasileira é composta por presos provisórios e repudiando a manipulação da prisão cautelar como forma de antecipação da pena.
Não há dúvida de que a organização, participação, financiamento, instigação e apoio aos atos exigem apuração e responsabilização de todos que atentaram contra o Estado democrático de Direito, o que democraticamente pressupõe estabelecer punições adequadas, mediante observância do devido processo legal e após o trânsito em julgado das decisões condenatórias. Nesse sentido, a decisão que manteve a prisão preventiva de Anderson Torres causa preocupação por duas razões.
Em primeiro lugar, a decisão aponta como fundamento para a prisão a existência de depoimentos de testemunhas e a apreensão de documentos que caracterizam fortes indícios de sua participação na elaboração de uma “minuta golpista” e em uma operação da Polícia Rodoviária Federal para tentar subverter as eleições presidenciais. Os fatos imputados são graves e exigem a persecução penal, porém ainda não podem se prestar à sua responsabilização criminal sob pena de perpetuar a deletéria cultura de antecipação da punição.
Em segundo lugar, a decisão se fundamenta no fato de que Anderson Torres teria negado aos investigadores a possibilidade de acesso ao seu telefone celular e a mensagens eletrônicas, de modo que apenas mais de 100 dias após a ocorrência dos atos golpistas concedeu suas senhas pessoais para conexão à nuvem de seu e-mail pessoal. Tal circunstância revela, lamentavelmente, uma visão autoritária do processo penal, segundo a qual o investigado deve contribuir ativamente para a produção da prova, o que não apenas viola o direito fundamental ao silêncio e a garantia à não autoincriminação, mas corrompe a essência da prisão cautelar, desvirtuando-a em verdadeiro instrumento de tortura mediante a imposição de sofrimento ao investigado como forma de obtenção de informações ou confissões.
Precisamos sair da eterna flutuação entre a impunidade e o abuso, marca da tragédia penal brasileira que nos aprisiona. Punir é, sim, um ato civilizatório e necessário —desde que o Estado atue nos limites da Constituição Federal, mediante a observância do devido processo legal, respeitando os direitos e garantias fundamentais e, ao final, toda e qualquer punição criminal esteja condicionada à existência de decisão transitada em julgado. Este é o único caminho possível nos trilhos da democracia constitucional brasileira.
Folha de SP