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Ex-ministro Ernesto Araújo, jornalista Rafael Fontana e analista político internacional Ivan Kleber comentam a aproximação entre Brasília e Pequim
Nesta semana, Brasil e China firmaram 15 acordos comerciais. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o secretário-geral do Partido Comunista Chinês (PCC), Xi Jinping, assinaram os contratos que preveem a cooperação para o desenvolvimento de tecnologias, o intercâmbio de conteúdos de comunicação e a ampliação das relações comerciais.
Para entender as consequências desses acordos, Oeste entrevistou o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, o jornalista Rafael Fontana e o analista político internacional Ivan Kleber. Confira os principais trechos.
Ernesto Araújo
O significa os investimentos chineses no Brasil?
Os investimentos chineses estão sempre guiados por uma estratégia política: fortalecer a hegemonial mundial do Partido Comunista. Os acordos não são orientados por uma lógica de mercado, como os investimentos das empresas de países capitalistas. Então, quando o Brasil recebe um investimento chinês em rodovias, portos, setor agrícola e tecnológico, o que está acontecendo é a inserção desse pedaço da economia brasileira numa estratégia chinesa. As rodovias, os portos e as propriedades agrícolas passam a funcionar para a China. Se o PCC quiser transformar as rodovias e os portos em centros de tráfico de drogas, transformará. Se quiser transformar num porto militar, transformará.
Há benefícios nesses acordos?
Pode até ser que haja um benefício econômico de curtíssimo prazo, mas, no longo prazo, o que acontecerá será a perda do controle sobre o seu próprio patrimônio. Não tem nada a ver com “pressão dos Estados Unidos” nem algo assim. Investimentos provenientes dos EUA ou de outros países capitalistas são investimentos de empresas privadas. Cada uma delas tem sua estratégia individual, cuja lógica é o lucro. Elas excluem a possibilidade de corrupção, porque uma empresa ocidental que for descoberta pagando propina sofrerá as piores consequências em seu país de origem. Pode ser eliminada da Bolsa de Valores, por exemplo.
Com essa aproximação da China, o agronegócio brasileiro corre risco?
É errado pensar que a China é importante para o agronegócio brasileiro, por ser o nosso principal mercado. Na verdade, é o contrário. Não é o Brasil que está produzindo e a China que está lá, passivamente, comprando. Não. O agronegócio brasileiro é importante apenas porque está inserido na estratégia do PCC de se firmar como fonte prioritária de alimentos para a sua população. A China vem e “manda” o agronegócio brasileiro produzir o que ela quer, quando quer, como quer. Isso vai aumentar ainda mais com o plano de conversão de pastagens degradadas em áreas de produção de grãos. É financiamento chinês, em troca da produção. A China controla tudo. Só que, em vez de plantarem na China, plantam no Brasil. E a lógica deles não é a lógica do mercado. Se a China planejar uma guerra, por exemplo, pode querer estocar alimentos e comprar mais do que consome. Depois, se quiser baixar o preço, pode parar de comprar.
Em relação à economia, quais são os efeitos desses acordos?
Hoje, com o comércio sendo feito em dólares, o Brasil tem um saldo de US$ 10, US$ 20, US$ 30 bilhões ao fim do ano. Com esses dólares, o Brasil pode importar produtos de qualquer outro lugar do mundo. Se o comércio passar a ser feito em iuane [moeda chinesa], a única opção brasileira será comprar produtos chineses. Isso significa que o comércio brasileiro, que já é muito concentrado na China, ficará ainda mais concentrado.
Rafael Fontana
Se o Brasil aderir à Rota da Seda, quais serão as consequências?
Primeiro, a Rota da Seda é um programa de exportação de mão de obra e desova de matéria-prima da China. Ao mesmo tempo em que a China diz oferecer infraestrutura, a ditadura comunista empurra goela abaixo contratos com empresas chinesas — que devem ser aceitos por seus novos parceiros explorados. Para completar, os chineses fornecem empréstimos a juros escorchantes. E o que acontece se o explorado não pagar o empréstimo bancário? Irá ceder a obra para uso da China. Essas obras incluem portos, aeroportos, rede energética, telecomunicações, ferrovias, rodovias, barragens. Ou seja, a maioria dos contratos visa a setores estratégicos.
E os EUA, como ficam nesse processo?
Em um segundo momento, os acordos entre a China e o Brasil podem gerar insatisfação nos EUA. Isso porque o Partido Comunista Chinês terá acesso a pontos estratégicos na América Latina, controlando áreas que podem ser usadas em um conflito militar ou numa guerra furtiva. Respondendo à pergunta, as relações do Brasil com os Estados Unidos não devem sofrer fortes abalos no primeiro instante. A América Latina continua sendo negligenciada pela Casa Branca, e o Brasil ocupa uma posição secundária no comércio internacional. Além disso, as atenções norte-americanas estão voltadas para a guerra na Ucrânia, para a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte [Otan] e para as questões políticas internas. O que precisa ficar claro é o seguinte: o maior perdedor é sempre o país que assina contratos com a China.
Quanto à adesão do Brasil ao iuane, o que isso significa?
Chega a ser engraçado criticarem o dólar e o euro por uma suposta falta de lastro. E o iuane chinês, por acaso, tem lastro? O Partido Comunista Chinês se sustenta em cima de desinformação e das mais deslavadas mentiras. Ninguém sabe ao certo o tamanho do Produto Interno Bruto [PIB] da China, porque as autoridades do Partido Comunista inflam os números desde a esfera municipal até a federal. Como confiar em um país que constrói prédios na mesma velocidade em que os derruba? Estamos falando de prédios novinhos em folha, sem moradores, implodidos impiedosamente, enquanto há uma bolha imobiliária em Pequim, Xangai, Shenzhen, Xiamen e Guangzhou.
Qual é o problema da economia chinesa?
A ditadura comunista injeta bilhões de iuanes em obras redundantes, como o metrô de Pequim. Há linhas paralelas com distância de apenas 300 metros entre elas. Essa realidade seria o sonho de qualquer paulistano ou carioca, mas, economicamente, é inviável em qualquer lugar do mundo. Tanto a capital chinesa como Xangai possuem, cada uma, mais de 800 quilômetros de linhas metrô. Só para comparar, São Paulo chegou a 104 quilômetros. Ou seja, o iuane se sustenta em uma economia com base em decisões políticas, não na oferta e na demanda. De uma hora para a outra, essa inconsequência financeira pode ruir no país de Xi Jinping, e o valor do iuane sofrerá fortes oscilações. Mais uma vez, no jogo de ganha-ganha, só a China ganha. Quem pagará a conta da irresponsabilidade não será o governo petista, é claro, mas o trabalhador brasileiro.
Ivan Kleber
Como o senhor avalia as relações comerciais entre o Brasil e a China?
Precisamos ter como premissa a última frase dita no encontro entre Xi Jinping e Vladimir Putin, em março. O chinês disse: “Estamos presenciando a maior mudança dos últimos cem anos no mundo. E seremos nós a conduzir essa mudança”. Óbvio que há um plano de ação. A primeira parte do plano consiste em estabelecer Xi Jinping com poderes praticamente absolutos na China. Conseguiram esse objetivo no ano passado, através do terceiro mandato. Agora, a segunda fase do plano é justamente a “desdolarização” do mundo. Xi Jinping tem um aliado muito forte, que é o próprio Joe Biden. O democrata, por meio de suas políticas completamente erradas e mal direcionadas na geopolítica, acaba deixando um vácuo muito grande para Xi Jinping aproveitar. O dólar é a moeda mais estável do mundo, pelo menos desde 1945. É a moeda que assumiu o lugar da libra esterlina, que esteve em vigor entre a Revolução Francesa, em 1789, e o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Por que os países, e principalmente os empresários, utilizam o dólar?
É uma garantia de você receber pelo seu trabalho, pelo seu serviço e pelos seus produtos. Trata-se de uma moeda estável, que não deixa os países nem os empresários à mercê de outras moedas menos estáveis. Ninguém precisa lidar com a instabilidade política dos países. Xi Jinping sabe que, para atingir os EUA, uma das coisas que precisam ser feitas é a “desdolarização”. Isso está ocorrendo com os países mais alinhados à China — e o Brasil está entre eles.
Os empresários brasileiros serão obrigados a aceitar a moeda chinesa nas transações comerciais?
Em um primeiro momento, não serão impactados com os acordos comerciais entre o Brasil e a China. Eles não serão obrigados a aceitar pagamentos em moeda chinesa, e o dólar continua sendo aceito. Ocorre que o dólar não é mais a única moeda, não é a prioridade. O empresário brasileiro terá a opção para escolher em qual moeda quer receber, se iuane ou dólar, mas a tendência é que o governo chinês dê preferência, obviamente, para a moeda deles.
Qual é o impacto imediato dessa medida?
Além do enfraquecimento do dólar e do câmbio, os EUA usam muito sua moeda para aplicar sanções internacionais a países que fogem das regras estabelecidas por Washington. Se os países começarem a diminuir suas reservas de dólar e conseguirem aumentá-las com outras moedas, os EUA perdem essa ferramenta importantíssima. É uma consequência imediata no curto prazo. Outro plano de Xi Jinping é, justamente, ficar cada vez mais independente dos EUA. O país norte-americano é a região que mais importa da China, e a tendência é que a China fique cada vez menos dependente da economia dos EUA. Os chineses querem que os EUA se tornem dependentes de Pequim, mesmo que seja no longo prazo.
Como os EUA avaliam os acordos comerciais entre o Brasil e a China?
A tendência é que as relações entre o Brasil e os EUA esfriem. Os EUA ainda podem tentar, via agenda ambiental ou via Amazônia, convencer o Brasil a não sair da sua esfera. Mas os fatos sugerem que o Brasil está se afastando de Washington. Não acredito que isso tenha um impacto comercial, pelo menos neste momento. Quem mora nos EUA e compra do Brasil, por exemplo, segue comprando e vice-versa. Mas, diplomaticamente, temos um afastamento. Ainda há a questão geopolítica, em que os EUA sempre tentam exercer influência em todo o mundo. E a China já assumiu essa posição na América.
Revista Oeste