Foto: Reprodução/Benedito Calixto, Marechal Deodoro da Fonseca, 1892, óleo sobre tela.
É bem possível que você não tenha aprendido nas aulas de história, mas a Proclamação da República não foi exatamente um mar de rosas. Embora tenha acontecido sem necessidade de conflitos armados, acabou com o clima de liberdade de expressão que até então vigorava no Império. Vamos contar isso melhor mais adiante, mas antes é preciso fazer uma breve recapitulação. Com a República proclamada, o novo governo provisório, que prestou juramento na Câmara Municipal do Rio de Janeiro na tarde de 16 de novembro de 1889, precisava tomar uma série de decisões práticas. O primeiro decreto, de número 1, assinado pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca, já havia sido publicado antes mesmo da posse oficial.
Escrito no dia 15, determinava que as províncias se tornavam estados, com direito a aprovar constituições próprias. O país, aliás, passava a ser constituído como os Estados Unidos do Brasil. A decisão era coerente com uma demanda dos defensores da instauração da República, que atuavam desde a década de 1860: distribuir o poder ao longo do território nacional.
Na sequência, no dia 19 de novembro, o Decreto 6 definia que os cidadãos habilitados para participar das eleições seriam todo cidadão brasileiro que soubesse ler e escrever, independentemente da renda – desta forma, substituía o critério econômico utilizado pelo Império pela seleção a partir da educação.
Os decretos se seguiram, assim como as mudanças na forma, incluindo a nova bandeira do país, claramente inspirada nas faixas e nas estrelas do modelo dos Estados Unidos, e a decisão de expulsar o imperador Dom Pedro II e sua família – nenhum parente do imperador poderia voltar ao país antes de 1920.
Uma das ordens, em especial, representou a volta à censura da imprensa, pela primeira vez desde o reinado de Dom Pedro I, seis décadas antes. Foi publicada num momento em que ainda não havia uma nova Constituição para regulamentar qualquer decisão tomada pelo governo que continuava se declarando provisório.
“Noções falsas e subversivas”
O decreto 85-A, de 23 de dezembro de 1889, foi publicado quando a nova república tinha apenas 38 dias de exigência. Rapidamente recebeu o apelido de “decreto-rolha”. Permitia ao governo perseguir a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão de pensamento, inclusive por cartas ou telegramas. Previa penas militares para conteúdos considerados críticos ao novo regime – isso num momento em que o Brasil ainda previa a pena de morte. O texto (ajustado à grafia atual) é claro:
“Os indivíduos que conspirarem contra a República e o seu Governo; que aconselharem ou promoverem, por palavras, escritos ou atos, a revolta civil ou a indisciplina militar; que tentarem suborno ou aliciação de qualquer gênero sobre soldados ou oficiais, contra os seus deveres para com os superiores ou forma republicana; que divulgarem nas fileiras do Exército e Armada noções falsas e subversivas tendentes a indispô-los contra a República; que usarem da embriaguez para insubordinar os ânimos dos soldados: serão julgados militarmente por uma comissão militar nomeada pelo Ministro da Guerra, e punidos com as penas militares de sedição”.
O decreto criava, portanto, um tribunal de exceção, formado exclusivamente por militares e com poder de julgar em corte marcial quaisquer cidadãos que discordassem do regime, sob o comando do Ministro da Guerra – o primeiro foi Benjamin Constant, que acabaria se afastando do cargo por divergências com Deodoro. Como é comum em ditaduras, a lei se apoiava em ameaças inexistentes, ou menos expressivas do que seus autores fazem parecer. Era a primeira vez, desde 1825, que cidadãos brasileiros podiam ser submetidos a tribunais militares.
“Houve, de fato, focos de resistência em alguns pontos do país, mas eram casos isolados que não serviam de base à formação de um partido restaurador”, relata o verbete do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre o marechal Deodoro. “Eram poucos os chefes monarquistas que não haviam aderido à República. Ainda assim, a hipótese de reação monarquista deu ensejo a uma série de medidas preventivas que acentuaram a face ditatorial do governo provisório”.
Para executar o decreto, prossegue o texto, “organizou-se a Comissão Mista Militar de Sindicâncias, que agiu com severidade e aplicou pesadas penas, inclusive a de morte, em geral comutadas por outras mais leves. A imprensa foi duramente atingida pelo “decreto-rolha”. A Tribuna Liberal, monarquista, foi impedida de circular, enquanto outros jornais, ameaçados, restringiram drasticamente o noticiário político”.
Ataque à imprensa
O decreto representou, de fato, um golpe profundo à imprensa, acostumada ao longo de décadas a ironizar e contestar o imperador Dom Pedro II – ao longo dos 49 anos em que governou, o monarca jamais solicitou ou autorizou nenhum ato de censura ou de perseguição a adversários políticos ou críticos, que inclusive costumavam pegar pesado.
O texto reforçado por um novo decreto, o Decreto 295, de 29 de março de 1890, em que o presidente, que havia criado e concedido para si mesmo o posto militar de general seis estrelas, se apresentava como “Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação”. O texto ampliava o alcance da censura, que poderia ser aplicada até mesmo a cidadãos brasileiros vivendo no exterior.
Sem especificar, mais uma vez, a que crimes se referia, argumentava que o governo não poderia permanecer indiferente “em presença da ação pertinaz e criminosa dos que intentam por todos os meios criar a anarquia e promover a desordem”. Mas estabelecia o conceito de responsabilidade solidária, que transformava o jornal, o dono da tipografia ou o editor do impresso em cúmplice.
Como resultado, a censura à imprensa continuou ameaçando os autores de críticas ao longo dos primeiros anos da República, um período turbulento, marcado por um golpe de estado impetrado pelo próprio Deodoro, pela tentativa de seu sucessor, o Marechal Floriano Peixoto, de instituir uma ditadura, e por rebeliões de peso, da Revolta da Armada, de 1893, ao cerco a Canudos, no final do século 19.
“Durante os sucessivos estados de sítio vividos pela nação, abatiam-se sobre a imprensa dois tipos de expectativa. De um lado, esperava-se a violência da censura sobre os jornais; de outro, a rotina da prisão e desterro dos jornalistas que violassem as ordens legais estabelecidas”, descreve o jornalista José Inácio de Melo Souza no livro O Estado contra os meios de comunicação.
Crise institucional
Deodoro seria eleito, de forma indireta, presidente. Em 25 de fevereiro de 1891, recebeu dos parlamentares 129 votos, contra 97 de seu concorrente, Prudente de Morais. Acontece que as eleições para vice-presidente ocorreram em separado, e o marechal Floriano recebeu 153 votos, contra 57 de Eduardo Wandenkolk, vice de Deodoro.
A vitória de Deodoro foi recebida em silêncio, enquanto Floriano foi aclamado aos gritos. Isolado, em 3 de novembro de 1891 o presidente fecharia o Congresso. “Indignado com a aprovação de uma lei que permitiria o impeachment do presidente, Deodoro fechou o Congresso. No dia 23, o almirante Custódio de Melo ameaçou bombardear o Rio. Doente e de cama, Deodoro então decidiu renunciar em favor de Floriano”, relata o historiador Eduardo Bueno em seu livro ‘Brasil, uma história’.
“Teimoso, autoritário e sem experiência administrativa, Deodoro fizera um governo desastroso, especialmente porque a política financeira do ministro Rui Barbosa havia mergulhado o país no caos”, Bueno prossegue. “O fechamento do Congresso, a decretação do estado de sítio e o Decreto-Rolha candidatam Deodoro ao posto de primeiro ditador brasileiro. Como ditadores não renunciam, o título acabaria ficando com seu sucessor”.
Créditos: Gazeta do Povo.