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Um conluio entre agências do governo americano e entidades civis recomendou censura durante a pandemia até para informações sabidamente verdadeiras que pudessem estimular a “hesitação vacinal”, revelaram jornalistas selecionados por Elon Musk que cobrem os “Twitter Files”.
Em mais uma série de revelações dos arquivos do Twitter na quinta-feira (9), os jornalistas Matt Taibbi e Michael Shellenberger propuseram uma forma mais ampla de interpretar como a rede social, antes de ser comprada por Elon Musk, contribuiu para a censura nos Estados Unidos e no resto do mundo.
De acordo com Taibbi e Shellenberger, a plataforma fazia parte de um “complexo industrial da censura” com participação de agências do governo e entidades que recebem dinheiro público. No mesmo dia, eles depuseram à Comissão Jurídica da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, onde foram interrogados publicamente por deputados republicanos e democratas. As informações são da Gazeta do Povo.
Os documentos publicados sugerem que o Twitter tinha um sistema chamado Flashpoint, usado para receber denúncias de diversas entidades governamentais como o FBI, o Departamento de Segurança Interna (DHS), a Agência de Cibersegurança e Segurança em Infraestrutura (CISA), o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) e o Departamento do Tesouro (USDT), contra contas a serem censuradas. Até o Departamento de Polícia de Minneapolis tinha acesso ao sistema de denúncia pelos bastidores. As entidades mandavam para o sistema e-mails contendo planilhas com centenas ou milhares de contas de usuários para “revisão”.
Havia reuniões periódicas entre os oficiais do governo e representantes do Twitter e outras redes sociais para tratar de assuntos como o “status” da Rússia, China, Irã, Venezuela, Coreia do Norte, além de “planejamento para as eleições”.
Caçada à “desinformação” russa e iraniana
Em um dos e-mails, os oficiais do FBI alegam ter detectado “comportamento coordenado inautêntico” envolvendo 185 contas robôs “conhecidas ou suspeitas” ligadas à Venezuela e Cuba que estariam amplificando a narrativa russa de “neonazismo” na Ucrânia facilitado por um “golpe de Estado” em 2014 “arquitetado por [Joe] Biden”, uma das razões usadas publicamente por Vladimir Putin para justificar a invasão do país. Das cinco contas apontadas como “principais influenciadores”, três estão banidas, uma é de um influenciador chavista com 68 mil seguidores e outra é de uma mulher com 21 mil seguidores defensora do regime de Ortega na Nicarágua.
Na resposta a essa denúncia, um funcionário do Twitter confirma que suspendeu 22 contas sul-americanas que estavam publicando sobre supostos nazistas na Ucrânia, mas discorda que russos estavam por trás do influenciador venezuelano: “encontramos evidências que sugerem que a conta é ligada a indivíduos do Partido Pirata na Catalunha e outros do espectro da esquerda”. Também compartilha a informação que a conta havia apagado três mil tweets.
Matt Taibbi dá outro exemplo de erro das autoridades da inteligência americana trabalhando com o Twitter: Em uma lista de 378 contas que alegaram ser “ligadas ao Estado iraniano” estava um veterano americano da guerra do Iraque que foi detido por publicar opinião contra o conflito, um ex-repórter do Chicago Sun Times e o site de notícias de esquerda Truthout.
Quem está no Complexo da Censura
À parte o monitoramento de inimigos dos Estados Unidos que de fato produzem desinformação, nem sempre essa justificativa foi usada. Em um e-mail de agosto de 2022, os agentes denunciaram vídeos do YouTube por “narrativas anti-Ucrânia”, o que está no domínio da opinião.
“Mas a maior parte dos pedidos de censura não vinha do governo diretamente”, informa Taibbi. A pandemia trouxe a consolidação do que ele chama de “complexo industrial da censura” em 2020. Além das agências do governo, foram envolvidas organizações não-governamentais como o Atlantic Council (think tank de relações internacionais fundado em 1961), o Observatório da Internet de Stanford e a Aliança para Assegurar a Democracia (ASD, conselho bipartidário americano de segurança nacional anti-Rússia fundado em 2017). Um funcionário do Twitter sugeriu convidar também a Open Society, de George Soros, e dois institutos conservadores, o Instituto R Street e Instituto Charles Koch.
O jornalista comenta que “ONGs idealmente servem para contrabalançar as grandes empresas e o governo. Há pouco tempo, muitas dessas instituições se viam assim. Agora, oficiais de inteligência [do governo], ‘pesquisadores’ e executivos em firmas como o Twitter formaram na prática uma só equipe”. Ele apresenta um e-mail de um executivo do Twitter, Nick Pickles, convidando nomes de todas essas organizações e do governo para um grupo no aplicativo de mensagens instantâneas Signal, conhecido por ser encriptado e seguro.
Há outro eixo no “complexo”: a imprensa. Um exemplo da junção de forças pela febre de esquerda de caça à “desinformação” foi uma cúpula promovida pelo Instituto Aspen em agosto de 2021 na cidade de mesmo nome conhecida por ser um polo de esqui nos EUA. O instituto dispõe de milhões de dólares em verbas federais do Departamento de Estado e da USAID (Agência dos EUA para Desenvolvimento Internacional). A jornalista e apresentadora Katie Couric, bastante famosa nos EUA, assina o relatório da cúpula junto a Chris Krebs, fundador da agência estatal CISA, que é parte do DHS (Departamento de Segurança Interna). Yoel Roth, ex-chefe de segurança do Twitter, também assina como consultor técnico. Até o príncipe Harry é listado como “comissário”.
O relatório — financiado com impostos e contando com a contribuição de jornalistas, pesquisadores e funcionários federais — recomenda que o governo dê a si próprio novos poderes, como ordenar a quebra de sigilo de dados de indivíduos, sugerindo que a Comissão Federal de Comércio (FTC) cuide disso. O documento também prevê colocar em “áreas de espera” novas publicações de “influenciadores com mau comportamento repetido” para “limitar o potencial de disseminação rápida de desinformação adicional”; e a desmonetização, recurso que foi muito usado no YouTube para punir quem desviasse da narrativa supostamente “científica” na pandemia.
Taibbi e Shellenberger veem promiscuidade nessa relação entre agências estatais (FBI, DHS/CISA), “especialistas” de ONGs com os mesmos financiadores e nomes recorrentes de repórteres que cobrem sua cruzada pelo “combate à desinformação”. Eles apresentam, como evidência de colaboração da imprensa, um e-mail de Hannah Murphy, correspondente de tecnologia do Financial Times, que, em vez de falar em nome do jornal, parece falar em nome de uma ONG, o Centro Contra o Ódio Digital (CCDH). Murphy avisa ao Twitter que a ONG preparou um relatório sobre 12 contas que estariam usando a rede social para espalhar desinformação contra vacinas da Covid, mas o documento estava “embargado”, ou seja, não público. “O CCDH disse que, ao não os banir, as plataformas estão falhando em aplicar suas políticas”, diz a repórter, que dá até o fim do dia para a rede social se manifestar.
Depoimento ao Congresso
Foi justamente a FTC, uma agência governamental independente, que pediu em 13 de dezembro de 2022 — ou seja, já sob a gestão de Elon Musk — que o Twitter identificasse “todos os jornalistas e outros membros da mídia para quem foram concedidos qualquer tipo de acesso às comunicações internas da empresa”. O pedido cita Matt Taibbi, Michael Shellenberger e as repórteres Bari Weiss e Abigail Shrier, também envolvidas publicamente em cobrir os Twitter Files. Para Taibbi, em depoimento à comissão da Câmara, a solicitação foi “um claro abuso de competência” da FTC.
Resumindo suas descobertas para os parlamentares, o jornalista disse que “descobrimos que o Twitter, Facebook, Google e outras empresas desenvolveram um sistema formal para receber ‘pedidos’ de moderação de todo canto do governo (…). Para cada agência do governo passando o pente fino no Twitter, há cerca de 20 entidades quase-privadas fazendo o mesmo, incluindo o Projeto de Integridade Eleitoral de Stanford, a Newsguard [financiada pelo Departamento de Estado], o Índice Global da Desinformação e outras, muitas delas financiadas por impostos”.
Um foco dessa rede está em fazer listas de pessoas “cujas opiniões, crenças, associações ou simpatias são chamadas de ‘desinformação’ ou ‘má informação’”. Para Taibbi, esse último termo é um eufemismo para “verdadeiro, mas inconveniente”. Um exemplo disso foram casos verdadeiros de pessoas afetadas por efeitos colaterais das vacinas contra Covid-19.
O Observatório da Internet de Stanford, da universidade homônima, criou em 2020 a “Parceria de Integridade das Eleições” (EIP), mais tarde rebatizada de Projeto Viralidade, explicitamente para substituir o trabalho do Conselho de Governança da Desinformação, do DHS (Departamento de Segurança Interna), que foi pausado e depois fechado pelo governo porque atraiu a ira da opinião pública e o adjetivo “orwelliano” de comentaristas políticos. Segundo dados do próprio projeto, ele colocou tarja de aviso de desinformação em 22 milhões de tweets até as eleições presidenciais de 2020, quando Donald Trump foi derrotado por Joe Biden.
Não só o EIP foi criado para substituir a controversa agência governamental por uma iniciativa privada de Stanford: ele fez parceria com a CISA e o Centro de Engajamento Global (GEC) do Departamento de Estado. Os funcionários do Twitter tratavam com naturalidade a relação íntima: “de acordo com a CISA, em denúncia escalada pelo EIP” aparece nos arquivos.
Após as eleições e a mudança de nome, o Projeto Viralidade reforçou suas atenções a suprimir publicações relacionadas à pandemia. Em um documento de recomendação de moderação de conteúdo para múltiplas plataformas, a organização público-privada aconselha ação contra “conteúdo verdadeiro que poderia promover a hesitação vacinal” (a falta de vontade de tomar as doses contra Covid), “posts virais de indivíduos expressando hesitação vacinal”, “histórias de efeitos colaterais verdadeiros das vacinas”, até mesmo notícias de “países individuais banindo certas vacinas”.
“Nenhum dos líderes desse esforço de policiar a expressão sobre a Covid tinha especialidade médica”, comenta Matt Taibbi. Na audiência no Congresso, Stacey Plaskett, uma membro não-votante democrata da Câmara que representa as Ilhas Virgens Americanas, o chamou de “suposto jornalista”. Taibbi explicou que tem trinta anos de experiência em jornalismo, tendo obtido prêmios e atuado por muitos anos na revista Rolling Stone. Outra deputada democrata, Sylvia Garcia, tentou pressionar o jornalista para que ele revelasse sua fonte no Twitter, e se ela é Elon Musk. Ela foi criticada pelo presidente da sessão, pois o sigilo de fonte jornalística é protegido por lei.
Créditos: Gazeta do Povo.