O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já deu sinais de que a linguagem neutra fará parte da nova gestão. Na posse de seis ministros, essa alteração de grafia, que não está prevista na língua portuguesa, já foi utilizada. A Agência Brasil, site oficial de notícias do governo federal, agora administrado pela equipe de Lula, também usou o dialeto em alguns conteúdos. Contudo, especialistas em língua portuguesa afirmam que essa mudança é meramente ideológica e não tem fundamento científico.
A professora de português e especialista em psicopedagogia, Kátia Simone Benedetti, explica que a linguagem neutra é uma tentativa que vai contra a natureza da cognição linguística de falantes de um idioma no qual a marcação de gênero é binária. Ou seja, a cognição linguística, formada no processo de aquisição da língua durante a infância, é formada por uma “bagagem inconsciente de conhecimento abstrato” sobre a estrutura do idioma.
“Esse conhecimento é usado naturalmente e fluentemente pelo cérebro, sem o uso dos sistemas e/ou recursos conscientes de processamento que demandam custos. Esse conhecimento espontâneo e inconsciente não requer custos cognitivos e por isso podemos usar a linguagem com tanta facilidade”, diz a professora.
Mas o emprego do gênero neutro vai contra essa naturalidade, pois exige que seja necessário alterar a estrutura das frases e usar recursos cognitivos que não são adequados para o processamento espontâneo da linguagem. Segundo a professora, a marcação de gênero também não é algo relacionado à sexualidade humana, mas à estrutura do sistema linguístico que se refere ao sistema de concordância entre os termos das frases.
“É um recurso que nosso cérebro usa para correlacionar as palavras dentro da estrutura frasal, de modo que possamos saber ‘quem se refere e se relaciona com quem’. A marcação de gênero pode coincidir com o gênero biológico nas palavras designadoras de seres biológicos, mas isso não implica que o gênero gramatical equivalha ou expresse especificamente o conceito de gênero biológico”, afirma.
A professora aponta também a ampla extensão do emprego desse dialeto, já que não são apenas os substantivos e adjetivos que flexionam em gênero, mas também os artigos e pronomes adjetivos. Ela dá o exemplo do uso de “amigues” ou “todes”. “Eu até posso mudar a forma fonológica dessas palavras, mas mudar todas as estruturas frasais para flexionar os determinantes e fazer as concordâncias necessárias é uma tarefa altamente custosa, do ponto de vista cognitivo”, explica. “É antinatural e mentalmente muito cansativo. Por exemplo, ao falar ‘meus amigues’ ou ‘minhas amigues’, eu automaticamente já usei a marcação binária nos pronomes meu e minha”, acrescenta a professora.
Apoiadores da linguagem neutra utilizam como justificativa de que a língua muda com o tempo. Contudo, essa afirmação é equivocada, segundo Benedetti. Isso porque a língua se altera, mas naturalmente, de forma espontânea, e não de maneira impositiva, assim como militantes buscam inserir.
“É uma proposta que ignora a própria natureza da relação linguagem-mente, pois pressupõe que mudanças superficiais na linguagem podem alterar o modo como nosso cérebro descreve semanticamente o mundo”, comenta a pesquisadora de metodologias de alfabetização.
Dialeto mais exclui do que inclui, diz especialista
Em entrevista à Gazeta do Povo, Cíntia Chagas, professora de português e autora de dois best-sellers sobre a língua portuguesa, ressalta que, apesar de o objetivo alegado ser a inclusão, na verdade esse dialeto é exclusivo. “Se coloca como algo para incluir as pessoas, mas, na verdade, ela exclui. Exclui os cegos, que fazem leitura por meio de softwares, exclui o surdo, que usa linguagem labial, os disléxicos e as crianças e adolescentes, porque impõe dificuldade de aprendizado”, diz.
Ela comenta, ainda, que “não é possível escrever um parágrafo minimamente compreensível utilizando esse dialeto”. Para a docente, a linguagem neutra é “pura e simples militância da ideologia de gênero”. Cíntia acredita que o principal objetivo é implementar essa linguagem nas escolas para que assim seja discutida ideologia de gênero para crianças e adolescentes.
“Primeiro eles mudam como a gente fala, depois como a gente pensa e depois como agimos”, critica Cíntia. Segundo a docente, assim que a linguagem é implementada, “começa-se de modo inofensivo” a discutir gênero não-binário e depois, banheiro não-binário. “A forma como está sendo feita não é honesta; a implementação é sorrateira”, questiona.
Linguagem neutra pode impactar processo de alfabetização
Outro problema apontado pela professora Katia está no processo de aprendizagem da língua, visto que o Brasil já convive com dificuldades crônicas na alfabetização. Com a proposta de neutralidade no idioma, o cenário se complicaria ainda mais, diz a especialista. “Equiparar equivocadamente o gênero gramatical com o biológico/identitário é mais uma maneira de retirar o foco dos alunos sobre a estrutura da linguagem, essa sim a essência do estudo da Língua na escola”.
Ela complementa que desenvolver a consciência metalinguística nos estudantes já é algo difícil atualmente. “A imposição do uso do gênero neutro será mais um ‘ruído’ no processo de ensino-aprendizagem da lectoescrita”, afirma.
A pesquisadora expõe que é uma ideia equivocada pensar que a alteração da língua pode mudar comportamentos preconceituosos e intolerâncias. Para isso, são necessárias outras medidas. “Acredito que as pessoas precisam aprender a identificar o que, de fato, constitui comportamentos preconceituosos, discriminatórios, segregadores e buscar desenvolver instrumentos legais para puni-los e coibi-los. Impor mudanças artificiais na Língua não é o caminho, pois seu uso pelo povo é algo que não pode ser controlado”, destaca.
Gazeta Brasil