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A cada quatro anos, a Copa escolhe uma nova casa. Já passou pelas Américas, Europa, Ásia e África. Agora, pela primeira vez, o Oriente Médio será sede do maior evento de futebol do planeta. Opção da Fifa que gerou polêmica por conta de questões políticas, culturais e religiosas. O mundo está prestes a conhecer o Catar. E os cataris, próximos de se abrirem ao Ocidente. Uma relação de aprendizado para ambos os lados.
Com menos de três milhões de habitantes e praticamente metade do tamanho de Sergipe, menor estado brasileiro, o Catar é um país localizado na Ásia Continental, na Península Arábica. O islamismo é a religião predominante, com o árabe sendo o idioma oficial. Independente desde 1971, a nação é tida como uma monarquia absolutista, governada pela família Al-Thani desde meados do século XIX.
Entrada no esporte
Um dos maiores produtores de gás natural liquefeito e com um dos PIB per capita mais altos do mundo, o Catar vem nos últimos anos utilizando o esporte para aumentar sua influência. Foi sede dos Jogos Asiáticos em 2006, do Mundial de Handebol, em 2015, e do Mundial de Atletismo, em 2019. No futebol, por meio da agência Qatar Sports Investments (QSI), um ramo de investimentos da Qatar Investment Authority, um fundo soberano do país, os cataris compraram o Paris Saint-Germain, da França.
“O Catar começou a se abrir para o mundo. Já tinha realizado outros eventos esportivos, trazido circuitos de Fórmula 1, mas queria quebrar mais um paradigma, que era o de fazer a Copa ir pela primeira vez ao Oriente Médio. A escolha modificou o eixo geopolítico do futebol, levando a competição para um país conservador, de leis rígidas”, frisou o coordenador do curso de Ciências Políticas da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Thales Castro.
Restrições culturais
O Catar é um país com diversas restrições que não são comuns no Ocidente. A homossexualidade e o adultério são crimes, além do consumo de álcool fora dos lugares permitidos. O ex-jogador da seleção e embaixador da Copa do Mundo, Khalid Salman, já disse que homossexuais possuem “dano mental”. Filmar e fotografar pessoas sem a autorização prévia também é proibido. Há, ainda, vetos de vestimenta, como o uso de roupas que mostram ombros, peito e coxas.
“Nós temos uma postura mais liberal com relação a tudo isso. Lá, porém, eles não admitem nem que haja protesto ou manifestação. Certas bandeiras, como feminismo, ideologia de gênero e homoafetividade não existem. A Fifa sabe que o Catar não vai se curvar quanto a isso. Esse choque cultural talvez seja o maior desafio. Os cataris não vão aceitar o desrespeito a suas leis, nem que os turistas tentem ‘catequizar’ os nativos com o seu modo de ser. Ainda assim, acho que eles serão mais ‘brandos’ em alguns pontos”, alertou o coordenador.
O ex-presidente da Fifa, Joseph Blatter, responsável por selecionar o Catar como sede da competição em 2022, disse estar arrependido pela decisão. “Foi um erro. O país é pequeno demais e o Mundial, grande”, apontou. Ele comandou a entidade máxima do futebol internacional de 1998 a 2015, renunciando após ser investigado por corrupção – recentemente, foi absolvido pela Justiça da Suíça no caso.
Preocupada com possíveis protestos de torcedores por questões envolvendo desde direitos LGBTQIA+ a preocupações com o tratamento de trabalhadores imigrantes, a Fifa publicou uma carta pedindo para que “não deixem o esporte ser arrastado para batalhas ideológicas ou políticas”.
Vale lembrar que o Catar rejeitou os pedidos de ONGs para criar um fundo de indenização para os trabalhadores mortos ou feridos nos preparativos da Copa do Mundo – estima-se que quase sete mil pessoas faleceram na construção dos estádios.
Indo além
De acordo com Castro, a tendência é que o Catar continue utilizando o esporte para se tornar mais influente nas relações internacionais. “Nunca houve Jogos Olímpicos no Oriente Médio, por exemplo. Pelo investimento feito no Mundial, não só pelos estádios construídos como também na questão de infraestrutura, é um caminho possível”.
Vivendo no Catar
Estima-se que pouco mais de 10% da população do Catar seja de nascidos no país. Os demais são imigrantes. Vindos do Brasil, a comunidade é inferior a dois mil. Uma das brasileiras da lista é a comunicóloga Giordana Bido, 24 anos. Diferente de outras pessoas, que buscaram o Oriente Médio como uma alternativa profissional, a gaúcha de Novo Hamburgo foi ao outro lado do mundo quase por acaso.
“Um dia, encontrei uma amiga no cinema que me contou que ia estudar nos Estados Unidos. Perguntei como eu poderia fazer isso, já que eu também tinha esse desejo. Achava que só sendo muito rico para bancar uma ida ao exterior. Estava matriculada na PUC (Pontifícia Universidade Católica) aqui do Rio Grande do Sul, mas ela me sugeriu estudar fora. Em 2017, a universidade que eu tentei entrar me disse não, mas me recomendou buscar vaga em uma outra unidade dela, no Catar. Tentei e consegui”, disse a estudante, que se formou em maio deste ano na Northwestern University, localizada na “Cidade da Educação”, em Doha.
“Eu não conhecia o Catar. Meus pais ficaram assustados em me mandar sozinha para cá, mas acabamos descobrindo que antigos vizinhos foram morar lá. Eles me falaram que era um lugar tranquilo. O susto que tomei aqui foi somente na chegada. Era um ‘forno’. Desembarquei às 8h30, sob um calor de 35º C. Olhei para um lado e vi uma mulher vestida de abaya preta e lenço na cabeça. Os homens com aquela roupa branca tradicional. Pensei ‘quero voltar ao Brasil’. Era tudo muito diferente”, contou. O tempo, contudo, fez a brasileira mudar a primeira impressão.
“Hoje, me sinto mais segura aqui do que no Brasil. Deixo meu computador na mesa, vou ao banheiro e, quando volto, ele está lá. Tem pessoas que deixam a chave na ignição do carro. Lógico que há problemas, como o assédio. Já fui seguida na rua, recebi alguns olhares, mas nada muito sério. Tem gente má em qualquer lugar”, frisou.
“O legal aqui é que há muitas pessoas com bagagem cultural. Quase todos têm duas nacionalidades. A pergunta mais frequente no Catar é ‘De onde você é?’ Por ter muitos imigrantes, todos falam inglês. Também é fácil se adaptar na alimentação porque existem restaurantes de marcas grandes O maior cuidado é na vestimenta. Isso não me afetou porque nunca fui de usar roupa decotada ou curta. No máximo, troquei regata por camisa fechada. Sempre dou uma dica para mulheres aqui: andem com um lenço na bolsa. É importante caso seja necessário cobrir alguma parte do corpo ao entrar em um shopping ou restaurante, por exemplo”, explicou.
Com ingressos para os jogos da Seleção na primeira fase e em uma possível vaga nas oitavas, Giordana dá o recado. “As pessoas que virão ao Catar precisam abrir a cabeça para um mundo diferente, deixar de ter preconceitos quanto à cultura ou religião. Muitos mitos sobre o país serão quebrados”, declarou.
Créditos: Folha de Pernambuco.