Foto: Rafaela Gama
Alta do dólar também influencia no preço da comida. Até as carnes, que estavam em queda, tendem a ficar mais caras
Instituições que antes previam alta de 3,5% para estes itens esperam aumento de 4,5% a 7,5% no ano nos alimentos que fazem parte da cesta de compras das famílias.
Trata-se de aumento superior ao da inflação geral, que deve encerrar o ano em torno de 3,96%, segundo o Boletim Focus. Com isso, arroz, legumes, verduras e frutas não devem ceder significativamente no segundo semestre. E até carnes e leite, que ficaram mais baratos nos últimos 12 meses, podem voltar a subir.
Para economistas, a perspectiva de preços de alimentos mais altos é um risco adicional no radar do Banco Central. A autoridade monetária, que calibra os juros na tentativa de controlar a inflação, já interrompeu o ciclo de queda da Selic na quinta-feira diante da escalada da moeda americana e riscos fiscais crescentes.
— O BC não reage aos choques primários, mas se ele estiver vendo que o preço de alimentação pode contaminar outros preços, aí entra a política monetária. Por isso, a alimentação é um risco adicional nesse cenário, já que a inflação geral pode ser maior e isso pode contaminar expectativas da inflação em 2025 — resume Alessandra Ribeiro, economista da Tendências.
Em comunicado, a autoridade monetária explica que a manutenção da Selic em 10,5% ao ano se deve ao cenário global incerto e ao cenário doméstico, marcado pela atividade aquecida e pelo aumento das projeções de inflação.
Alessandra, da Tendências, avalia que a política fiscal expansionista vem afetando o dólar, o que se reflete com certa defasagem nos preços ao consumidor e exige cautela por parte do BC.
— O BC está olhando esse cenário de riscos e preocupado com a inflação futura — diz.
A Tendências revisou de 3,5% para 4,5% a projeção para aumento da alimentação no domicílio em 2024, puxado pelos efeitos do El Niño e pela tragédia no Rio Grande do Sul. Segundo Alessandra, o El Niño afetou a oferta de alimentos in natura como cebola e batata.
Em razão das enchentes do Rio Grande do Sul, ela espera ainda altas de preços mais persistentes de arroz, trigo e soja, e que poderá impactar indiretamente outras cadeias, como a de pães e carnes.
No lugar da batata, inhame ou chuchu
A cozinheira e dona de casa Rosilane Araújo, de 56 anos, bserva o aumento dos preços dos produtos da feira:
— Eu sinto que a variação de semana a semana pode ser até mais sutil, mas quando a gente vai ver o preço já está lá em cima e não tem muito o que fazer. Nesses momentos, Rosi opta por variar os legumes comprados para o dia a dia, substituindo muitas vezes a batata, que subiu 57,94% em 12 meses, por inhame, chuchu ou abóbora.
Luiz Roberto Cunha, professor da PUC Rio, projeta que legumes, hortaliças, verduras, frutas, frango em pedaços e óleo de soja subam mais que a média da inflação geral este ano. Parte da alta de alimentos pode vir não só do clima, mas via câmbio:
— O câmbio era uma variável que não se esperava ficar muito forte até o fim do ano. Só que uma mudança de patamar de R$ 5 a R$ 5,10 por dólar para R$ 5,40 começa, sim, a afetar (inflação).
Segundo Cunha, o ano de 2024 está rodeado de incertezas no cenário doméstico e internacional que afetam a cotação do real:
— É um ano difícil de avaliar. Fatores externos são muito negativos. Fatores econômicos mundiais são de restrição.
Coordenador dos Índices de Preços do Ibre/FGV, André Braz lembra que os preços dos alimentos consumidos em casa costumam apresentar certa trégua entre maio e julho, mas não é o que tem ocorrido.
O ciclo agrícola foi bastante afetado pelo El Niño no primeiro semestre, destaca o economista, e a seca no Centro-Oeste, entre abril e maio, afetou a produção de soja e milho e pode deixar frango e ovos mais caros. No caso de itens ligados a hortifrúti, os impactos da tragédia no Rio Grande do Sul já apareceram no IPCA de maio, com alta de 0,62% do grupo Alimentação e bebidas.
Com isso, os alimentos in natura que registrariam queda nos preços nesta época do ano, ficaram mais caros. Por consequência, a alimentação no domicílio em 12 meses, que afeta mais as famílias de menor renda, está subindo e já influencia nas expectativas de inflação para este ano e 2025, diz Braz:
— Isso cria uma rigidez maior na taxa de juros. Como cortar juros se a inflação deve aumentar? Isso vai forçar com que mantenhamos uma política monetária mais contracionista e isso não é bom. O juro alto pode tirar a boa fase do mercado de trabalho e diminuir o poder aquisitivo das famílias.
Quase igual aos orgânicos
Na ponta mais pessimista, Luis Otávio Leal, economista-chefe da G5 Partners, projeta que a alimentação no domicílio fique 7,5% mais cara em 2024 — nível mais próximo da média histórica do país, de alta de 7,3% ao ano.
Ele espera altas mais fortes neste mês em itens como leite, trigo e arroz, por causa das enchentes no Rio Grande do Sul:
— A gente tem cenário bem menos rosa do que o mercado esperava no início do ano.
Na XP, a projeção de 3,5% para alta da alimentação no domicílio este ano subiu para 5% diante da escalada do dólar e da tragédia climática no Sul. Segundo Alexandre Maluf, o clima tem se mostrado mais adverso do que o esperado, e a recente alta do dólar trouxe revisões para preços de alimentos no mercado financeiro.
— O dólar mais alto atrapalha a inflação — explica Maluf, ao citar que o leite, seus derivados e produtos ligados ao trigo devem ficar mais caros por causa do câmbio.
Não é de hoje, porém, que o brasileiro sente um desconforto com os preços dos alimentos, lembra o economista da XP. Dados apontam que os itens alimentícios têm pesado mais para as famílias desde março de 2020, início da pandemia, quando foram afetadas diferentes cadeias de suprimentos globais.
Nas contas de Maluf, a alimentação no domicílio subiu, em média, 51% entre março de 2020 e maio de 2024. No período, os salários cresceram 33%. Os alimentos in natura, como vegetais, hortaliças, frutas e legumes, chegaram a subir 104% neste mesmo intervalo, enquanto os pães subiram 40% e as carnes, 25%, após alívio no ano passado.
— A percepção para a população é que o nível de preços dos alimentos está alto. A gente reconhece que houve avanço significativo em transferências governamentais, mas, mesmo assim, a percepção de que o custo da alimentação subiu é amparada nos dados do IPCA — diz Maluf.
Outro risco no radar é o clima menos favorável para a produção no campo. Especialistas já esperavam que fosse mais curto que o usual o intervalo entre o El Niño e o La Niña este ano, mas começa a surgir um cenário mais pessimista de que a passagem de um fenômeno climático para o outro seja mais abrupta.
Relatório do Santander alerta que uma rápida transição do El Niño para o La Niña pode ter um impacto nas safras de grãos na América do Sul e, consequentemente, aumento nos preços dos alimentos voltados ao consumidor. Segundo levantamento do banco, os preços da soja e do milho subiram nas últimas três vezes em que o país foi afetado pelo fenômeno La Niña.
“O risco de preços mais elevados é considerável”, disseram analistas no relatório. “O La Niña é conhecido por trazer clima seco para a região Sul, o que prejudica as lavouras de grãos plantadas no segundo semestre e reduz o rendimento das culturas. Brasil e Argentina são produtores e exportadores chave no comércio global de milho e soja e, portanto, fixadores de preços”.
Antes dos efeitos do La Niña, os preços de alimentos in natura já vieram subindo por conta do excesso de chuvas no Sul. Fruto, entre outros fatores, de um El Niño mais severo. Segundo o IBGE, o arroz subiu 26% no acumulado em 12 meses até maio. Já a batata inglesa subiu 57,94%.
O Globo