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A frente do traje era um entrelaçado de tons de roxo e rosa, adornado com rendas e fitas. Quanto à parte posterior, pouco havia, revelando ser um body fio-dental de tecido translúcido. Tal como as demais lingeries expostas nas prateleiras, essa peça já teve um dono anterior. E, a exemplo de todas as outras vestimentas íntimas à mostra nesta loja do nordeste do Alabama, é quase nula a possibilidade de retorno ao proprietário original. Atualmente, está disponível para compra com desconto.
Situada a um trajeto de carro de três horas do aeroporto mais movimentado do planeta, a Unclaimed Baggage destaca-se como a única loja nos Estados Unidos especializada na aquisição e revenda de bagagens não reclamadas das transportadoras, oferecendo-as ao público com descontos atrativos. A loja colabora com companhias aéreas e também com empresas de ônibus, trens, caminhões e do setor hoteleiro, recolhendo itens esquecidos, perdidos ou extraviados pelos passageiros e que não foram recuperados.
Cerca de um terço do encontrado pelos funcionários é reciclado ou descartado. Outro terço é doado a entidades beneficentes, e o terço restante é vendido tanto online quanto no espaço físico da loja, que ocupa 4.600 metros quadrados em Scottsboro.
Desde sua fundação em 1970, o estabelecimento se transformou em um ponto turístico de relevância no Alabama, atraindo anualmente mais de um milhão de visitantes. Atualmente, a loja conta com produtos de marca própria, uma cafeteria e até um museu que exibe alguns dos achados mais inusitados, como uma figura do filme “Labirinto – A Magia do Tempo”.
Pranchas de esqui, relógios Rolex e mais
“Meu Deus, quantos itens.” Um homem loiro olha incrédulo para o oceano de prateleiras à sua frente. À vista, uma variedade que vai de computadores a chapéus, passando por bolsas de grife, ternos dignos de tapete vermelho, rifles de caça e peças de roupa íntima (apenas novas, com etiquetas ou em embalagens originais). Uma raquete de tênis da Wilson, avaliada em U$ 300, estava sendo vendida por U$ 77,99. Já uma mala da Tumi, cujo preço original era de US$ 575, encontrava-se por US$ 399,99.
Durante a cobertura do Washington Post, a loja promovia sua liquidação anual de esquis. Além do acervo regular, havia corredores repletos de equipamentos para neve, incluindo jaquetas Arc’teryx macias e casacos impermeáveis, além de esquis, pranchas de snowboard, capacetes e botas.
Austin Snider, 29 anos, percorreu 160 quilômetros até a loja para estar entre os primeiros 50 na fila, garantindo assim 30 minutos de acesso antecipado e outros privilégios. Para assegurar um desses lugares, era necessário acampar no estacionamento durante a madrugada. Rumores indicavam que pessoas do Canadá e da Dakota do Norte — uma viagem de pelo menos 25 horas de carro — acamparam este ano.
Snider fez um excelente negócio com uma prancha de snowboard de edição limitada da Burton, “quase US$ 2 mil para encomendar”, segundo ele. “Aqui, paguei US$ 300.”
Seu pai, Jeff Kidwell, 50 anos, residente da vizinha Ider, Alabama, é cliente da Unclaimed Baggage há quase duas décadas. Ele também teve sorte na liquidação, encontrando uma prancha de snowboard Burton de edição limitada com núcleo de alumínio, completa com fixações, vendida como nova por cerca de US$ 1.700. “Levei por US$ 200”, contou Kidwell.
A loja possui uma equipe de especialistas responsáveis por autenticar joias e itens de luxo, além de identificar falsificações. O produto mais valioso já vendido foi um relógio Rolex de platina, estimado em US$ 64 mil e comercializado por US$ 32 mil em 2014.
Diversos “caçadores de tesouros” frequentam regularmente o local em busca de peças únicas. Em algumas ocasiões, os descontos não são tão expressivos. Durante a visita do Washington Post, uma bolsa Hermès Birkin rosa choque estava exposta atrás de um vidro por US$ 17 mil — preço semelhante ao encontrado online. Contudo, adquirir um item pelo valor integral na Unclaimed Baggage pode significar evitar longas listas de espera por marcas de alto padrão.
Compradores de artigos de luxo, como Michele Fowlkes, 52 anos, e seu filho, Maurice Tucker, 23, de Huntsville, apreciam a possibilidade de encontrar itens raros. “Algumas peças são únicas e talvez não sejam encontradas em outro lugar”, disse Michele.
Como itens perdidos são recuperados
Os negócios podem ser vantajosos, mas e a questão ética? Ao percorrer os corredores repletos de pertences alheios, alguns itens despertam mais reflexão que outros, como roupas de bebê ou joias que podem ter sido heranças familiares. Não se trata de “sapatinhos de bebê à venda, nunca usados”, mas de “vestido de noiva com desconto em uma mala perdida”, o que toca o coração.
A Unclaimed Baggage, contudo, tem outra perspectiva. “As companhias aéreas realizam um bom trabalho” na recuperação da maioria das bagagens perdidas, afirmou Bryan Owens, proprietário e CEO da segunda geração da loja.
“Cerca de 98% das malas extraviadas são devolvidas aos donos no primeiro dia ou logo após”, disse Owens. E, nos 90 dias seguintes, a maior parte dos 2% restantes também é resolvida. O que chega ao Alabama representa “apenas uma fração de 1%”, explicou.
Considerando os 470 milhões de malas despachadas apenas em voos domésticos em 2022, uma fração de 1% ainda equivale a centenas de milhares de malas órfãs.
O erro mais comum é a falta de etiqueta. Sonni Hood, 26 anos, gerente de relações públicas da Unclaimed Baggage, agora aconselha a todos que conhece a colocar informações de contato dentro e fora da bagagem.
Após várias tentativas da companhia aérea em devolver a mala ao proprietário — e após indenizar os clientes pela perda — as malas não reclamadas acabam na Unclaimed Baggage, onde são preparadas para venda.
Nem tudo se resume a Gucci e iPhones. Após Owens adquirir a empresa de seus pais e irmão em 1995, ele se deparou com um grande contêiner comercial à prova de choque. Dentro, encontrou um dispositivo desconhecido. Suspenso por ilhós de borracha, havia um aviso: “Manuseie com extremo cuidado, valho meu peso em ouro”. Era um sistema de orientação para um avião de combate.
Restos humanos?
A empresa processa até 70 mil peças mensalmente, tornando-se a maior lavanderia comercial do Alabama. Em tempos passados, quando o negócio era menor, a lavagem ocorria em um prédio do outro lado da rua. Alan Garner, morador de Scottsboro, relembra que sua avó, Vera, trabalhou lá por cerca de três anos. “Ela tinha histórias incríveis”, disse Garner, 56 anos.
Vera encontrou restos humanos mais de uma vez e, em uma ocasião, ao limpar um par de sapatos, descobriu drogas escondidas no salto. Devido a tais descobertas, a empresa mantém um relacionamento próximo com as autoridades locais.
Garner permanece um cliente fiel ao longo dos anos. “Para alguns, é o bar local onde todos conhecem seu nome; para mim, é a Unclaimed Baggage”, disse ele.
Garner vive a cerca de dois quilômetros de distância e visita a loja após o trabalho algumas vezes por semana. Cerca de 75% de seu guarda-roupa é composto por itens da loja. Esse número seria maior, segundo ele, se conseguisse encontrar sua marca de calça favorita (7 Diamonds) no tamanho certo. Ele adquiriu Bíblias antigas