Ronmel Lopez, 43 anos, nasceu em Estelí, a cerca de 150 quilômetros ao norte de Manágua, capital da Nicarágua, ano em que a esquerda chegou ao poder por meio da Revolução Sandinista. Momentos de sua vida foram bastante conturbados. “Testemunhei a opressão da década de 1980 contra as pessoas e a igreja”, contou Lopez. “Vi boa parte da destruição do meu país naquele tempo.”
“Quando eu estava na escola, tinha medo de os militares virem atrás de mim”, desabafou Lopez, ao recordar-se dos tempos de estudante na capital. Segundo ele, durante muitos anos, teve de conviver com uma “guerra interna”, pessoas baleadas e viu até mesmo amigos e familiares serem mortos pelos sandinistas.
Aos 18 anos, Ronmel conseguiu sair da Nicarágua. Atualmente, ele vive em Los Angeles e se tornou porta-voz da Sociedade Civil para a Questão Digital, uma organização de direitos humanos atenta às violações em seu país. Ronmel ainda tem parentes e conhecidos na Nicarágua, que convivem com a escalada de tensões do regime de Daniel Ortega. “Faço o que posso por eles”, disse.
Há tanto tempo longe de casa, o ativista nem sequer conseguiu velar o pai, vítima da covid-19. Isso porque Lopez é monitorado pelo regime de Ortega, em razão de sua militância, e teme que algo pior possa acontecer com ele e sua família.
O dia a dia dos parentes e amigos de Ronmell é a realidade da maioria da população nicaraguense, que, há anos, sofre com a uma economia debilitada e a falta de democracia, visto que Ortega está há quase duas décadas no comando.
Prisões de opositores, perseguição a igrejas e à imprensa marcam a ditadura. Pelo quarto mandato consecutivo, com eleições duvidosas, Ortega luta para controlar as manifestações, que se intensificaram nos últimos quatro anos.
Recentemente, bispos e fiéis cristãos (religião dominante no país) foram presos, e até a CNN local sofreu censura por emitir críticas ao regime extremista.
Início da perseguição a cristãos na Nicarágua
Desde 2018, quando os protestos se intensificaram, a Igreja Católica sofreu mais de 190 ataques no país, segundo relatório do Observatório Anticorrupção e Transparência encaminhado à Ajuda à Igreja que Sofre (ACN, na sigla em inglês). No fim de agosto, o regime prendeu o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, e outras sete pessoas — quatro sacerdotes, dois seminaristas e um funcionário da diocese.
Entre as ações do regime contra a igreja, houve o fechamento de canais de televisão católicos, a expulsão de missionários e a perseguição a padres e bispos. Cerca de 20% dos ataques envolveram assaltos, destruição de ambientes religiosos, incêndio criminoso e invasão de propriedade privada.
No final de junho, dois canais de televisão católicos, Merced e Canal San José, foram retirados do ar. Outros já tinham sido bloqueados em maio. De acordo com o relatório, desde que as igrejas abriram as portas para socorrer estudantes e familiares que se manifestavam pela renúncia de Ortega, em 2018, a perseguição à Igreja Católica aumentou na Nicarágua.
“Antes de abril de 2018, a Igreja estava sujeita a abusos esporádicos”, observou o documento. “Após essa data, a hostilidade aumentou tanto em número quanto em grau. A linguagem ofensiva usada pelo casal presidencial contra a hierarquia católica se tornou mais clara e comum, e as ações de instituições públicas contra as obras de caridade da Igreja também aumentaram.”
No começo de junho, 101 instituições de caridade foram fechadas, entre elas, a Associação das Missionárias da Caridade de Madre Teresa de Calcutá, onde freiras se dedicavam a servir os mais pobres e administravam um lar para idosos. Além disso, o regime acabou com uma creche para filhos de mães carentes e um abrigo para crianças abandonadas e vítimas de abuso.
O aumento da temperatura na Nicarágua fez com que a ONG Portas Abertas, que mapeia a perseguição a cristãos no mundo, inserisse o país na lista de nações em observação — uma etapa antes de entrar para a Lista Mundial da Perseguição, que elenca 50 países onde a perseguição é mais acentuada. “A igreja, que tradicionalmente se opõe a regimes de força, tornou-se alvo do regime por acolher os manifestantes”, constatou Marco Cruz, presidente da Portas Abertas.
Cruz defende uma intervenção pacífica da comunidade internacional naquele país, como acolhimento de fiéis e diálogo em prol da paz. “Só em 2021, 22 líderes cristãos foram detidos por Ortega”, lembrou. “Em 11 de agosto, 12 cristãos sofreram agressões por parte de agentes do regime. Insustentável, essa situação requer atenção de outros países.”
Nas redes sociais, internautas fizeram um paralelo com as manifestações no Chile, em 2020, quando extremistas de esquerda queimaram duas igrejas católicas na capital, Santiago. Francisco Borba, professor universitário e coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, afirma que, embora pareçam semelhantes à primeira vista, as situações são distintas, visto que, na Nicarágua, a queda de braço entre Igreja e governo ocorre há algum tempo. “Muitas pessoas que estavam na manifestação do Chile nem sequer sabiam o que estavam fazendo lá”, disse o especialista, ao mencionar que o país não tem histórico acentuado de perseguição. “Na Nicarágua, a indisposição do governo com os cristãos é mais clara e ocorre há mais tempo. Os dois lados sabem o que um pensa sobre o outro.”
Nesta semana, durante discurso na Organização das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro anunciou um plano para acolher fugitivos da perseguição. “Quero aqui anunciar que o Brasil abre suas portas para acolher os padres e freiras católicos que têm sofrido perseguição do regime ditatorial da Nicarágua”, anunciou. “O Brasil repudia a perseguição religiosa no mundo.”
O ex-presidente Lula, amigo de Ortega, tem evitado comentar a situação da Nicarágua. Em entrevista ao jornal El País em novembro do ano passado, o petista minimizou a ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua. Na fala, ele comparou o tempo em que o ditador e a chanceler alemã Angela Merkel estão no poder, mas afirmou que Ortega errou se mandou prender opositores.
“Temos que defender a autodeterminação dos povos”, disse Lula. “Sabe, eu não posso ficar torcendo. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não?”
O início dos protestos por democracia
Em 2021, aproximadamente 50 opositores ao ditador foram presos, sendo sete deles potenciais concorrentes à Presidência. O tribunal da Nicarágua declarou esses prisioneiros como “culpados por atentar contra a segurança nacional” ou “por conspiração” e sentenciou o grupo a 15 anos de cadeia.
O chefe da diplomacia europeia, Josep Borell, declarou que as eleições na Nicarágua não foram legítimas, já que Daniel Ortega “prendeu todos os seus adversários”. “A situação na Nicarágua é uma das mais graves neste momento no continente americano”, ressaltou Borell, em Lima, no Peru, durante uma viagem à América Latina.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos também afirmou que a repressão à oposição não permite “um processo eleitoral honesto e livre” no país.
Ascensão de Ortega ao poder
Desde 1984, Daniel Ortega é o único candidato presidencial da Frente Sandinista de Libertação Nacional, que, através da luta armada, derrubou Anastasio Somoza, em 1979, pondo fim a 42 anos de ditadura. Com a queda de Somoza, nove comandantes revolucionários passaram a governar o país, através de uma Direção Nacional. Daniel Ortega era um deles e coordenava o comando. Por isso, foi escolhido candidato presidencial, quando os guerrilheiros decidiram convocar eleições.
Mesmo com o fim da ditadura, o país vive uma guerra civil entre os sandinistas e os “contra”, rebeldes financiados pelos Estados Unidos. Por isso, era preciso legitimar o governo revolucionário através do pleito eleitoral, vencido por Daniel Ortega. A guerra, no entanto, não cedeu. Grande parte do país foi destruída.
Em 1990, Ortega tinha certeza de uma nova vitória nas urnas, mas, para surpresa geral, a vitória de Violeta Barrios de Chamorro punha fim à revolução.
Ortega tentou retornar ao poder três vezes, mas fracassou (1990, 1996 e 2001). Contraditoriamente, a cada nova derrota, concentrava poder ao enfraquecer o sistema de comando colegiado do partido. Em 2000, a Frente Sandinista não tinha votos suficientes para ganhar as eleições, mas o presidente liberal, Arnoldo Alemán, somava escândalos de corrupção. Ortega e Alemán fizeram um pacto de impunidade e dividiram o Estado entre os dois.
Assim, Ortega passou a controlar metade dos poderes. O acerto incluiu diminuir a 35% o limiar de votos necessários para ser eleito no primeiro turno. Era o volume de votos que Ortega podia obter.
Em 2005, o popular sandinista Herty Lewites decidiu concorrer nas primárias contra Ortega, seu amigo. Também concorria Víctor Tinoco, atualmente preso político do regime de Ortega. Diante da possibilidade de uma derrota interna, a convenção sandinista, dominada por Ortega, eliminou para sempre as eleições primárias e expulsou os concorrentes do partido.
Lewites insistiu na candidatura para as eleições de 2006 pelo Movimento Renovador Sandinista, que passou a reunir dissidentes de Ortega. Daniel Ortega tinha 23% de intenções de voto; Lewites, 15%; e, para aumentar as chances de Ortega, os liberais estavam divididos: Eduardo Montealegre, 17%; José Rizo, 11%.
As eleições caminhavam para o segundo turno, quando, repentinamente, Lewites morreu de infarto pouco depois de uma cirurgia de rotina. Não houve autópsia. Ortega ganhou aquelas eleições com apenas 38% dos votos, retornou ao poder em 2007 e começou a construir um poder hegemônico.
Créditos: Revista Oeste.