Foto: ReproduçãoPedro Ladeira – 17.mai.23/Folhapress.
A posição do chefe da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, contrária à homenagem a João Cândido, líder da Revolta da Chibata (1910), é vista por especialistas como uma ignorância da persistente desigualdade racial na sociedade brasileira. As informações são da Folha de S. Paulo.
Apesar de tocar em um tema sensível para a Marinha — a hierarquia —, o episódio foi importante para a história nacional e traz uma reflexão necessária sobre o racismo na sociedade brasileira.
João Cândido foi o líder da Revolta da Chibata, um motim ocorrido no Rio de Janeiro em 1910, conhecido principalmente por sua luta contra os castigos físicos impostos aos marinheiros. Com o tempo, Cândido e a revolta se tornaram símbolos nacionais contra o racismo.
Na segunda-feira (22), Olsen condenou, em carta enviada à Câmara dos Deputados, o projeto de lei que visa incluir o personagem histórico no livro de heróis e heroínas da pátria. Ele se referiu ao projeto como um “reprovável exemplo” e chamou os participantes da insurgência de “abjetos marinheiros”.
O projeto de lei é de autoria do parlamentar Lindbergh Farias (PT-RJ) e é relatado por Benedita da Silva (PT-RJ).
Para Álvaro Pereira do Nascimento, professor titular de história da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor de uma biografia sobre João Cândido, a inclusão do líder histórico no Livro de Heróis da Pátria é importante para o país, ainda marcado pelo racismo.
“Na historiografia, a ideia de um herói ou heroína é controversa. Entretanto, não ter essas pessoas [negras, mulheres] nesses livros é reservá-los somente a homens brancos”, diz.
Ele afirma que a revolta teve um caráter propositivo e foi além da mera reação aos castigos físicos. Propunha, por exemplo, a retirada de oficiais violentos, a revogação do código disciplinar que permitia o castigo corporal e medidas de educação para os marinheiros de comportamento reprovável.
Segundo Nascimento, embora tenha impactado aspectos importantes para a Marinha, como a hierarquia e a disciplina, o evento também precisa ser visto a partir do aspecto racial, uma vez que a maioria dos oficiais era branca, enquanto os marinheiros eram majoritariamente pretos e pardos.
“Fazia 22 anos da libertação da escravidão e os oficiais ainda reprimiam os marinheiros com castigos corporais. Neste contexto, Cândido foi alçado ao cargo de almirante, chamado popularmente de almirante negro.”
A “promoção” a almirante se deu em razão do apoio popular, mas o líder nunca chegou a ser de fato promovido ao posto.
Segundo Andersen Figueiredo, mestre em História da África pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), a resistência em considerar Cândido um herói da Pátria revela o racismo ainda persistente na sociedade brasileira.
“Ele já deveria ter sido incluído no livro. Cândido foi um dos ícones da luta contra o racismo da época”, afirma. O especialista lembra que, no início do século 20, os negros continuavam, em alguns contextos, sofrendo castigos similares ao que ocorria no tempo da escravidão.
“João Cândido teve a coragem de denunciar os castigos que os marinheiros sofriam. Falou sobre não poderem suportar a escravidão persistente na própria Marinha brasileira”, diz Figueiredo.
Para Francisco Phelipe Cunha Paz, historiador e doutorando em história pela Unicamp, o reconhecimento de João Cândido entre os heróis nacionais é um esforço necessário para contar a história de uma parte do Brasil “violada e violentada” desde o início da colonização.
“João no panteão da Pátria é ao mesmo tempo uma lembrança-denúncia do racismo como base de sustentação da história desse país. É também uma forma de combate e reparação ao racismo”, afirma.
Segundo Ynaê Lopes dos Santos, professora do departamento de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), um conjunto de razões justifica a inclusão de João Cândido no Livro de Heróis da Pátria, como o fato de ele ser um homem negro em um contexto no qual a ideia de herói construída na história do Brasil faz referência a apenas homens brancos.
Além disso, a entrada dele no livro ajudaria a jogar luz sobre a maneira como a história militar vem sendo contada. “É uma maneira ordenada pelo racismo. Então, os sujeitos protagonistas geralmente são brancos, o que silencia não só a participação desse sujeito de baixa patente, mas também das próprias tensões existentes dentro da experiência militar”, afirma.