Foto: Caíque Rodrigues/g1 RR
Nível de água do rio chegou a 39 centímetros negativos, o segundo pior índice desde 2016, quando houve a seca histórica.
O Rio Branco, principal rio de Roraima, atingiu a marca de 39 centímetros negativos nesta segunda-feira (25) e enfrenta a segunda maior seca da história. Com o baixo nível de água, o cenário é de balsas e canoas na areia, pescadores à deriva sem ter como navegar e pessoas atravessando o rio pé.
A marca deste mês de março fica atrás apenas da seca em 2016, quando o Rio Branco chegou a 57 centímetros negativos e enfrentou a pior escassez desde que se iniciou o monitoramento em 1972, há 52 anos, pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), operado pelo Serviço Geológico do Brasil.
Roraima enfrenta o período seco desde outubro, situação climática que deve se estender até abril. O estado lidera o número de focos de calor do país em 2024. Com a falta de chuvas, rios têm secado – como o caso do Rio Branco, e há ocorrências de incêndios florestais que consomem casas, animais, a vegetação e espalha fumaça poluída pelo ar.
No Rio Branco, as dunas de areia tomaram conta da paisagem e a água corrente deu lugar à praia extensa. Na Orla Taumanã, um dos pontos turísticos mais conhecidos de Boa Vista, onde era possível ver o rio correndo, agora dá até para caminhar por debaixo da estrutura.
🔥 Enquanto isso, a quatro dias para o fim de março, ainda não choveu na capital e a tendência é que o nível do rio baixe ainda mais, o que preocupa – o esperado para o período era de 39,2 milímetros de chuva, conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Barcos e flutuantes encalhados aonde costumava ter água no Rio Branco, em Boa Vista — Foto: Caíque Rodrigues/g1 RR
De acordo com a pesquisadora em geociência do Serviço Geológico do Brasil, Jussara Cury, que acompanha as bacias da Amazônia Ocidental, o que ocorre atualmente no Rio Branco é um “momento de estiagem severa”.
“Os níveis são considerados baixos desde outubro de 2023 quando começava a estiagem onde as mínimas normalmente ocorrem em fevereiro do ano seguinte, assim, com as precipitações na região muito abaixo do normal desde janeiro do ano em curso, a vazante ficou acentuada e de certa forma prolongada pela ausência de chuvas no mês de março”, explicou.
Canoas ancoradas na praia em meio à seca do Rio Branco, em Boa Vista — Foto: Caíque Rodrigues/g1 RR
Roraima tem boa parte do território localizado no hemisfério Norte, por isso, atualmente está na estação seca, chamada de “verão amazônico” — o período vai de outubro a março. Os meses de dezembro e janeiro são os mais secos, com registro de poucas chuvas.
Fonte de água potável que abastece a casa de moradores de Boa Vista, a situação do Rio Branco é considerada “sensível” pelo presidente da Companhia de Águas e Esgotos de Roraima (Caer), James Serrador. Ele sugere que a população economize água potável em casa.
“A água é um bem escasso e a gente está numa situação crítica. Há pouco tempo, menos de dois meses, a gente falava no rio ainda com o dado positivo e hoje estamos negativo. Portanto, estamos muito próximos da nossa margem de segurança”, disse James.
O presidente disse ainda que, por enquanto, a Caer opera dentro do previsto para fornecer água à população, mas isso pode mudar.
“Hoje estamos em pleno funcionamento, mas pode chegar a um ponto em que a gente tenha que desligar a bomba de captação porque não vai ter volume de água necessário para garantir o abastecimento.”
💨 Quem vive às margens do rio lamenta a situação que, somada às nuvens de fumaça causadas por incêndios florestais no céu da cidade, preocupa a população.
‘Nunca vi tanta areia no rio’
Empresário e pescador, Stanley Lira, de 69 anos, mora às margens do Rio Branco. Conhecido como “Boboco”, ele administra o bar e restaurante “Marina Meu Caso”. Para ele, a seca que o rio enfrenta se compara a de 1998, quando o estado enfrentou umas das piores estiagens da história.
Mas, na visão dele, em 1998 não havia tanta areia quanto agora. Ele acredita que o novo cenário tenha relação à atividade garimpeira em rios que se conectam com o Rio Branco, como o Uraricoera, e às dragas que extraem areia.
“O assoreamento foi grande nos últimos quatro anos. Muita draga de areia, garimpo, plantação de soja. Tinha seca, mas antes você podia navegar de barco por aí. Hoje não tem como. Diminuiu muito o movimento de barcos por aqui. É algo que assusta. Nunca vi tanta areia no rio”, disse o pescador ao g1.
Em tom de comparação, Boboco mostrou onde o nível já chegou: cobrindo o telhado do restaurante. Agora, o rio não alcança nem a rampa onde as canoas são ancoradas. Na praia que se formou na frente do local, canoas estão encalhadas em meio à areia e à nuvem de fumaça.
Mas, Boboco acredita no poder de reconstituição da natureza, e se diz confiante na “volta por cima” que o rio vai dar quando começar o período chuvoso, previsto para abril.
“Lamento muito, porque todo mundo que trabalha com o rio, precisa dele. A população depende dessa água. Muita areia, mas daqui a dois anos, essa área estará limpa. A água vai voltar com o período das chuvas”, disse.
Na avaliação do doutor em Geociências e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR) Vladimir de Souza o cenário atual de Roraima – de incêndios, estiagem e fumaça pode impactar o meio ambiente futuramente.
“Há perda de biodiversidade devido às queimadas, e até mesmo áreas de floresta estão sendo afetadas. Isso tudo causa um desastre ambiental”, afirma.
Além disso, o professor reforçou que a situação do rio é efeito do forte aquecimento das águas do Atlântico, e isso “somado ao desmatamento e à drenagem de lagoas para atividades agrícolas, prejudica a recarga dos lençóis freáticos e dos rios”.
“Nos outros anos, durante o El Niño, as chuvas conseguiam amenizar os efeitos da seca. Porém, atualmente, devido ao aumento do desmatamento e da exposição do solo, a seca é mais severa”, explica o pesquisador.
‘Tá difícil pra andar de canoa’
Fernando Silva Coelho, de 44 anos, vive em Roraima há 28 anos. Há 12, trabalha como pescador e, desde que começou a pescar profissionalmente nos rios de Roraima, nunca viu uma seca tão severa quanto essa neste período. Pela experiência de vida, segundo ele, sempre choveu durante a Semana Santa.
“Na data de hoje, está muito diferente. Até agora não choveu, porque era nessa época que já chovia aqui. Na Semana Santa sempre choveu. Quando o rio secava, não ficava desse jeito tão seco”.
Emocionado em meio aos flutuantes na areia, se disse preocupado com o rio que banha a capital de Roraima.
“Muito triste. Muito triste mesmo. A gente fica até emotivo um pouco de ver o rio dessa forma. Porque a gente não quer que o rio fique assim. Mas é a mudança do clima. É assustador”, disse o pescador.
O que mais o surpreende é a quantidade de areia no meio do rio. “A praia é boa, mas para curtir. Para a gente que pesca não é viável. Nós que dependemos da pesca”.
Quem também está sentindo os efeitos dos baixos níveis do Rio Branco é o pescador Jandeci Pinho, de 47 anos. Ele trabalha em um flutuante que, no momento da entrevista, estava encalhado no meio da praia. Pescador há 10 anos, ele disse que nunca viu o rio chegar a este nível.
🛶 “Nunca [vi o rio assim], essa é a primeira vez. É ruim demais, porque vemos tudo seco, sem ter para onde ir de barco. Mal conseguimos navegar aqui, porque está tudo seco, é só pedra, é raso demais”.
Ele explica que não está pescando por conta da piracema, período em que os peixes estão se reproduzindo, mas que segue navegando por onde dá.
“É perigoso até colocar uma canoa com motor na água tão rasa, as vezes vai na remada ou a gente vai bem devagar com o motor de popa, porque com pouca água não conseguimos andar”, contou o pescador.
Outra questão que tem atrapalhado Jandeci são as nuvens de fumaça que se tornaram constantes na capital. Isso atrapalha a visão de quem navega pela rio.
“A fumaça também está muito densa. Não conseguimos enxergar, nem a ponte. E essa fumaça atrapalha quem trabalha com canoas no rio, porque às vezes está tão densa que eles não conseguem atravessar de um lado para o outro do rio. Também aumenta o risco de acidentes”.
Debaixo da orla foi o lugar que o jovem migrante venezuelano Jesus Lorono, de 25 anos, escolheu para lavar e secar as roupas. Ele está na cidade há pouco menos de um mês e, sem trabalho e sem ter onde ficar, ele e a esposa aproveitaram o vento e o sol para improvisar um varal onde antes corria a água do Rio Branco.
Em espanhol, ele disse que não conhece o rio cheio. Natural de Puerto Ordaz, ele veio para Roraima fugindo da crise vivida pela Venezuela e em busca de uma vida melhor.
“Eu venho dormindo descansando de baixo da orla mesmo. Não tem onde lavar [a roupa], aqui é o único lugar. E Boa Vista é muito quente. Agora estou procurando um trabalho. Lá na Venezuela, eu trabalhava como mecânico. É realmente muito triste o rio assim, mas estamos aproveitando pois não temos aonde tomar banho ou lavar e secar as roupas”, disse Jesus ao g1.
Fumaça de incêndios florestais
Após dois decretos reconhecendo oficialmente os efeitos da seca em Roraima, 14 dos 15 municípios do estado estão em situação de emergência.
Os municípios são: Amajari, Alto Alegre, Boa Vista, Cantá, Caracaraí, Caroebe, Iracema, Mucajaí, Pacaraima, Rorainópolis, Normandia, São João da Baliza, São Luiz e Uiramutã. Bonfim, ao Norte, é o único município que não está em estado de emergência.
Mas a falta de água não é o único problema enfrentado pela população roraimense. Em meio à seca, incêndios florestais consomem casas, animais e a vegetação, espalhando fumaça pelo estado.
Para se ter ideia, numa escala que vai de 0 a 160 µg/m3, um material particulado que pode penetrar os pulmões, reduzindo a capacidade de respiração e até causando doenças, a capital chegou a atingir334.5µg/m3, às 18h36 desse domingo (24), segundo a Plataforma Selva.
A fumaça vem dos incêndios florestais que ocorrem nas cidades próximas da capital e principalmente da Guiana, país que faz fronteira com Roraima, e do Suriname — embora, o estado tenha muito mais focos que os dois países.