Yuja Wang não teve o começo que esperava. Ao subir ao palco do Theatro Municipal na quarta-feira à noite, a pianista chinesa residente em Nova York, vestindo um de seus característicos vestidos curtíssimos, pretendia tocar Bach, mas foi perturbada por alguns ruídos. Com expressão concentrada, semelhante à de uma atleta de ginástica artística, Wang acionou o iPad na estante do piano, mas seu olhar se desviava para cima, em direção aos balcões do teatro.
Alguns ruídos indesejados às vezes acontecem nas plateias. No entanto, o que Wang ouvia no início da Série de Concertos O GLOBO/Dellarte era o ranger das cadeiras retráteis do Municipal, especialmente vindo dos andares superiores. O barulho era tão intenso que a pianista de 37 anos interrompeu a execução da Abertura à Francesa em Si Menor, BWV 831, de Johann Sebastian Bach. Ela apontou para a fonte do ruído nos andares de cima e deixou a sala por alguns minutos, surpreendendo um Municipal com ingressos esgotados.
A tensão no ar, carregada de reprimenda, dividiu o público em dois grupos: os que pediam silêncio aos vizinhos com chiados e os que aplaudiam, tentando trazer a artista de volta ao palco. Quando ela retornou, hesitou em recomeçar e perguntou à plateia se mais alguém estava ouvindo os ruídos.
Foi quando uma mulher irritada com a hesitação de Wang gritou do terceiro andar do Municipal, em inglês, num dos mais loucos barracos do passado recente da praça Floriano: “Esse teatro é velho! Você precisa entender!”
“Não é culpa minha”, respondeu Wang, com gestos de quem não entendia as razões da reclamação. A espectadora ensaiou uma resposta, ouviu um forte “shut up!” da plateia, e o concerto, enfim, recomeçou. Tentando se concentrar, Wang retomou a Abertura de Bach, dessa vez com um toque ainda mais vigoroso, a mão mais pesada nas teclas, como se sua raiva momentânea quisesse provar um ponto.
Caipirinha para relaxar
A pianista chinesa Yuja Wang relaxa no Galeto Sat’s, após concerto conturbado no Municipal — Foto: Marvios dos Anjos
“Deu pra reparar, é?”, disse ela ao GLOBO, aos risos, na churrascaria Fogo de Chão, onde era esperada para jantar depois do recital turbulento. Depois, ela ainda esticaria a noite tomando caipirinha no Galeto Sat’s, famoso fim de noite de Copacabana (mas atenção, o do caso Chico Moedas e Luisa Sonza é outro, a filial de Botafogo). Ali, na caçada da Barata Ribeiro com Prado Júnior, juntou-se anonimamente aos botafoguenses em êxtase pela classificação na Libertadores, determinada que estava a virar a noite sem dormir antes de zarpar para o Galeão às 6h da manhã, rumo a Atlanta. Lá, confessou outra lembrança que vai levar do Rio: o mormaço de Copacabana a deixou bem queimada nas costas e no colo.
Wang depois continuou o programa com execução de dois prelúdios com fuga da coleção opus 27 do russo Dmitri Shostakovich, que estará entre seus próximos lançamentos pela gravadora Deutsche Grammophon. São peças de rico contraponto e dificílima execução, com grandes saltos e exigência de agilidade que remetem a Bach, mas de inequívoco sabor russo.
A pianista Yuja Wang no Theatro Municipal — Foto: Marvio dos Anjos
São raros os pianistas no mundo que conseguem igualar a velocidade, as dinâmicas e a riqueza de cores de Wang, uma artista incansável de 1,58m que simplesmente ignora certos mitos persistentes na música clássica.
– Grandes mãos não são necessárias para tocar Rachmaninov, isso é apenas uma desculpa. Não se trata de um esporte. Sempre há uma maneira – declarou ao GLOBO, entre comentários entusiasmados sobre o filme “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, que assistiu durante um dos voos de sua turnê pela América Latina, que incluiu também Lima e Buenos Aires.
Silêncio
A primeira parte do recital, após a retomada do BWV 831, foi tensa. Além de executar oitavas e escalas vertiginosas com serenidade – enquanto seu pé, calçado em um Louboutin agulha, preenchia a sala com um controle poderoso do pedal – Wang também produzia pianíssimos de uma delicadeza comovente, destacando ainda mais os ruídos de cadeiras e tosse que ainda ecoavam na sala. O medo na plateia era tangível, e os olhares pareciam monitorar cada som vindo dos espectadores ao redor.
– Enfrentei situações como essa na China. Muitas vezes, algumas pessoas vão a recitais em busca de entretenimento, querem ouvir peças famosinhas enquanto conversam ou falam no celular. Fica em casa, vai ver uma série. Ontem (terça, 12) toquei no Teatro Colón, e as pessoas estavam muito mais silenciosas – diz Wang. – Martha Argerich contava que seu professor, Arturo Benedetti Michelangeli, a ensinou que era preciso ‘ouvir o silêncio’, porque a música surge sempre a partir dele. Não quero ser uma nazi da sala de concerto, mas a realidade é que, quando eu não ouço o silêncio, não consigo dar o melhor de mim, porque sinto como se as pessoas não quisessem me ouvir — afirma Wang, que, depois do concerto, no restaurante, assistia ao celular a cada vídeo que recebia dos fãs pelo Instagram, em parte por nítido prazer em se ver, mas também como se quisesse entender o que tinha feito no palco.
Na segunda parte do espetáculo, foram apresentadas as quatro baladas de Chopin, nas quais a interpretação romântica exigia uma profunda expressão de sentimentos. Vestida com outro microvestido, desta vez verde e igualmente brilhante e curto, Wang executou essas peças com elegância, concentração e maestria, mesmo quando um som de lata sendo aberta interrompeu o ambiente. Apesar do ruído ter diminuído após o intervalo, ainda era possível observá-la fazendo pausas nas passagens mais emotivas, como se aguardasse o fim de algum rangido de cadeira ou de uma crise de tosse, antes de prosseguir com a música.
Diante de tudo, era de se esperar que a estrela de temperamento forte negasse muitos bis para os cariocas. Curiosamente, após sair ao fim da quarta balada de Chopin, Yuja Wang retornou ao piano para uma sequência de oito encores, quase todos peças de muita energia e sem pausas – o tipo de coisa que silencia uma plateia indomável. E aí, enfileirando a “Malagueña”, do cubano Ernesto Lecuona, o “Danzón”, de Arturo Márquez, a “Valsa da Dor”, de Villa-Lobos, “A Cotovia”, de Glinka, além de peças de Prokofiev e do ucraniano Nikolai Kapustin, que morreu em 2020, a pequena notável deixou o Municipal de joelhos, subjugado por uma artista que venceu a noite de virada.
As informações são de O Globo