Foto: Reprodução/Polícia Federal
Investigações em várias partes do Brasil indicam que o controle de organizações criminosas sobre casas de apostas está por trás de disputas territoriais, ameaças e até assassinatos.
Facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), além de “capos” do jogo do bicho, já disputam fatias do mercado de apostas esportivas, também conhecidas como “bets”. O GLOBO levantou inquéritos policiais em estados como Rio de Janeiro, Ceará e Rondônia, que apontam o uso das apostas online, legalizadas no Brasil desde 2018 e em processo de regulamentação neste ano, para maximizar ou lavar receitas de atividades ilícitas. A investida de organizações criminosas se misturou com brigas territoriais, resultando em assassinatos, incêndios e ataques em pontos de aposta.
No ano passado, o Congresso aprovou uma legislação que prevê a taxação e regulamentação das apostas esportivas online. A nova lei, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, estabelece regras para o licenciamento e busca coibir a entrada de recursos ilegais. Até agora, contudo, investigações indicam que o mercado de apostas se tornou um ramo atrativo para o crime.
Em abril, a Polícia Federal prendeu dois parentes de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, um dos chefes do PCC, em uma operação que apura o envolvimento da facção paulista com casas de apostas no Ceará. O inquérito apontou que Leonardo Alexsander Ribeiro Herbas Camacho, sobrinho de Marcola, divulgava em suas redes sociais anúncios da Fourbet, uma plataforma de apostas esportivas online. Na prisão da cunhada de Marcola, Francisca Alves da Silva, a PF encontrou um recibo de transferência bancária e um bilhete com alusões a Menesclau de Araújo Souza.
Menesclau é apontado como responsável pela contabilidade do PCC no Ceará e participava da gestão de unidades físicas da Loteria Fort no estado, segundo a investigação. Os policiais também identificaram materiais de divulgação da Fourbet e da Loteria Fort nos mesmos pontos de aposta.
A suspeita de elo entre as bets e o PCC foi reforçada, segundo a PF, após uma abordagem policial em 2022 encontrar Leonardo no carro de Henrique Abraão Gonçalves da Silva. Ele é filho de uma das gestoras da Loteria Fort no Ceará, Cíntia Chaves Gonçalves. Leonardo afirmou aos policiais que trabalhava para Henrique, que se apresentou como responsável pela Fourbet no Mato Grosso do Sul.
Ao indiciar o quarteto por organização criminosa, o delegado da PF Igor César Conti Almeida escreveu que há “robustos indícios, também, da prática de lavagem de dinheiro obtido de forma ilícita” através das plataformas de apostas. A PF ainda não estimou o montante lavado, mas mapeou um total de R$ 301 milhões movimentados nas contas de mais de 20 investigados.
Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF, o sociólogo Daniel Hirata avalia que as apostas online são uma “nova fronteira” para grupos que sempre buscaram diversificar suas atividades. Ele cita as rifas promovidas pelo PCC nos anos 1990, na periferia paulistana, como exemplo de que jogos de azar podem se prestar mais do que à lavagem de recursos, e servem também para capitalizar as organizações.
— Os mercados preferenciais desses grupos são os de regulamentação e fiscalização fracas. As bets representam uma oportunidade pelo ingresso de valores relativamente pequenos por aposta, mas com grande malha de atuação. E além dessa passagem de dinheiro da economia ilegal para a legal, as organizações criminais buscam entrar em atividades que podem ser lucrativas por si mesmas — avalia.
No Ceará, o PCC enfrenta a concorrência do CV pelo controle de casas de apostas. No fim de 2021, chefes do CV chegaram a proibir empresas como a Loteria Fort e a Fourbet de atuar em sua área de influência. Segundo o Ministério Público estadual, a desavença está por trás de incêndios em casas de apostas no estado. O MP atribui os ataques a orientações de Douglas Honorato Alves, encarregado dos negócios da facção carioca no Ceará, e atualmente foragido.
Os investigadores encontraram mensagens nas quais Alves cobra seus comparsas a impedir o funcionamento de casas que não se aliarem à Loteria do Povo, ligada à facção.
No Rio, a máfia que domina o jogo do bicho e as máquinas caça-níquel também expandiu seus tentáculos para as bets. Um dos bicheiros que já diversificou seus negócios é Rogério Andrade. Um email de um de seus funcionários, encontrado pelo MP, revela que o bando estava engajado na criação de um site de apostas fora do país já em 2020.
“Quando ele tiver isso, nunca mais vamos correr o risco da Justiça achar que estamos fazendo algo ilegal”, dizia a mensagem.
Em agosto de 2022, quando Andrade foi preso pela PF num sítio na Região Serrana do Rio, agentes apreenderam um bilhete citando uma plataforma de apostas, “Heads Bet”, e a frase “já está pronta”. Com sede em Curaçao, paraíso fiscal caribenho, a Heads Bet segue em operação e tem 12 mil seguidores no Instagram.
Os bicheiros também tentam impor no mundo digital o monopólio que exercem nas esquinas da cidade. Em uma troca de mensagens por celular, obtida pelo MP, um dos gerentes de Andrade alerta seu interlocutor, interessado em operar “apostas de futebol feitas em um site”, a não sediar a operação em regiões de influência do bicheiro: “Irmão, isso aí é uma coisa que é do homem, entendeu? Se for na área, não pode, entendeu? Ele proíbe mesmo”.
A disputa por esse mercado digital também foi o pano de fundo da execução do advogado Rodrigo Marinho Crespo, em fevereiro, no Centro do Rio. Para o MP, Crespo incomodou “interesses escusos de uma organização criminosa atuante” no ramo de bets ao comprar domínios de sites.
Já em Rondônia, a PF identificou em 2021 que o responsável por um site de apostas lavava dinheiro oriundo de remessas de maconha e cocaína para o CV em oito estados brasileiros.
Segundo a investigação, o dinheiro era injetado na bet Rondo Esportes, de Leandro Blumer, e depois saía em forma de “prêmios” pagos aos próprios integrantes da quadrilha. No auge da operação, a casa chegou a pagar quase R$ 13 milhões a apostadores em apenas uma semana.
Num dos casos, a PF rastreou pagamentos de R$ 1,1 milhão feitos à quadrilha por uma carga de 126 quilos de cocaína, interceptada a caminho de Minas Gerais. O dinheiro, segundo o inquérito, foi parar nas contas da Rondo Esportes, que já patrocinou um time de futebol e até abriu filial no Mato Grosso, antes de ser suspensa pela Justiça.
Blumer chegou a ser preso em 2021, mas hoje responde em liberdade.
Procurada, a defesa de Leonardo Herbas Camacho negou que ele esteja “envolvido em qualquer atividade ilegal” ou que seja integrante de “organização criminosa”. A defesa de Francisca Alves da Silva afirmou que ela “não possui nem jamais possuiu qualquer tipo de relação com quaisquer casas de apostas”. O advogado de Cintia Chaves afirmou que a Loteria Fort atua na legalidade e “não tem qualquer relação com a Fourbet” ou com facções. A defesa de Henrique não quis comentar o caso.
O advogado de Rogério Andrade não quis se manifestar. Nos processos em que responde, no entanto, ele nega todas as acusações feitas pelo MPRJ.
A defesa de Leandro Blumer afirmou que há “perfeita lisura das atividades” da Rondo Esportes, e disse que a denúncia é “equivocada e fruto do natural desconhecimento” sobre o mercado de bets. O GLOBO não conseguiu contato com as defesas dos demais citados.