A proposta do presidente do TCU (Tribunal de Contas da União), Bruno Dantas, de que novas mudanças nas regras da Previdência Social comecem pelos militares, colocou a cúpula das Forças Armadas em alerta.
Assuntos relacionados a alterações na remuneração de militares inativos são considerados sensíveis e motivo de preocupação no comando. Os militares temem ser alvos prioritários no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em mudanças no SPSMFA (Sistema de Proteção Social dos Militares das Forças Armadas), o conjunto de direitos que possuem, por lei, para garantia de remuneração, pensão, saúde e assistência tanto na ativa quanto na inatividade.
Na última reunião do Alto Comando do Exército, de 13 a 17 de maio, os generais mais graduados já haviam decidido que o Sistema de Proteção Social dos militares merecia vigilância constante. O tema entrou no radar após Dantas, em entrevista à Folha, apresentar um roteiro de medidas ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para evitar o estrangulamento das contas do governo devido ao aumento das despesas obrigatórias. A proposta inclui mudanças na Previdência dos militares e servidores civis, além da desvinculação do salário mínimo de alguns benefícios previdenciários.
Com tabelas elaboradas pela auditoria do tribunal, Dantas alertou para a desproporção entre os déficits das contas da Previdência de diferentes grupos. Enquanto o déficit per capita (por beneficiário) do setor privado, no INSS, é de R$ 9,4 mil e o dos servidores civis chega a R$ 69 mil, nas contas dos militares esse valor é significativamente maior, alcançando R$ 159 mil.
A entrevista, publicada três dias após a reunião do Alto Comando do Exército, reforçou a desconfiança dos militares. Um requerimento convidando o presidente do TCU para prestar esclarecimentos sobre mudanças na Previdência dos militares foi apresentado pelo deputado federal Sargento Portugal (Pode-RJ) à Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara.
No governo Lula, o tema dos militares é tratado com cautela nos bastidores, mas encontra defensores no Palácio do Planalto e na área econômica. Isso porque a lei aprovada em 2019, que reestruturou a carreira dos militares após a aprovação da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da reforma da Previdência, não é considerada uma reforma efetiva.
O mesmo diagnóstico foi compartilhado pelo presidente do TCU. O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, tenta acalmar os ânimos para evitar que a demanda por uma reformulação da carreira militar ganhe força. Segundo interlocutores do ministro, ele pretende se encontrar com Bruno Dantas nos próximos dias para explicar a posição dos militares e defender que o tema está pacificado.
A lei aprovada em 2019 para os militares aumentou o tempo de serviço de 30 para 35 anos e estabeleceu que oficiais e praças da reserva e pensionistas devem contribuir com a pensão militar até a morte. Os cálculos indicam uma redução de R$ 10 bilhões em uma década após a aprovação do texto.
Adicionalmente, as Forças Armadas criaram planos para redução de efetivo, com o objetivo de diminuir em 10% o tamanho das tropas. Com a mesma lei, no entanto, os militares conseguiram outros benefícios, como aumentos na remuneração ao elevar percentuais de aumento salarial por cursos concluídos, além de passarem a receber o dobro do valor estabelecido como ajuda de custo ao passarem à reserva.
Com a reforma, os militares recebem —como ajuda de custo— oito vezes o salário do último posto quando deixam o serviço ativo. No caso de generais, o valor chega a R$ 300 mil. Um exemplo citado é o fato de o comandante do Exército, general Tomás Paiva, ter recebido R$ 770 mil ao ir para a reserva, composto por ajudas de custos e indenizações pecuniárias adquiridas ao longo de 42 anos de serviço.
Conforme reportagem da Folha, os benefícios servem como forma de inflar as remunerações dos oficiais. Como a verba é calculada com base no salário dos militares, os ganhos são mais significativos para oficiais do que para praças, que reclamam das diferenças nos valores.
Generais avaliam que, nos últimos anos, os militares sofreram uma série de retrocessos em seus direitos. Salários sem reajustes e sistema de saúde prejudicado pela falta de orçamento são duas reclamações crescentes no Exército.
Procurado pela Folha, o Ministério da Defesa disse não conhecer os critérios utilizados no cálculo dos números citados pelo presidente do TCU. No entanto, em nota, destacou que a reforma realizada em 2019 visa equilibrar as contas em dez anos, com a contribuição de militares, inativos e pensionistas, a exclusão do período de treinamento e o período mínimo necessário na ativa, de 30 para 35 anos.
O Exército tem um general ligado à Secretaria de Economia e Finanças, responsável por acompanhar as discussões sobre o sistema de proteção dos militares e antecipar o lobby contra eventuais mudanças. Oficiais informaram à Folha, sob condição de anonimato, que a função é importante para evitar “maldade”. Na visão dessas fontes, a remuneração de militares inativos é discutida em todos os governos, com foco na redução de direitos.
Um acórdão do TCU (Tribunal de Contas da União) de 2022 estabeleceu que o sistema de proteção dos militares não é um regime previdenciário. Portanto, é responsabilidade do Tesouro Nacional pagar pensões e salários aos militares da reserva. Por isso, os oficiais dizem que não faz sentido falar em déficit previdenciário dos militares, se as remunerações dos fardados da reserva não estão contabilizadas no Orçamento de Seguridade Social.
Membros da cúpula das Forças Armadas também defendem que os benefícios na inatividade, como a aposentadoria integral e menos tempo de serviço, foram criados para compensar uma série de direitos que os militares não têm, como horas extras, adicional noturno e limites diários de trabalho.
A discussão iniciada pelo presidente do TCU surge na esteira da pressão que o governo Lula está sofrendo para apresentar medidas de corte de despesas, visando garantir a sustentabilidade do novo arcabouço fiscal nos próximos anos. Entre essas medidas de revisão de gastos, está a desvinculação do salário mínimo e a mudança nos pisos constitucionais que estabelecem a aplicação mínima de verbas na saúde e educação.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, liderou o debate publicamente, mas o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem alimentado a discussão, embora de forma discreta em público.
Na semana passada, durante um debate na Câmara, o ministro defendeu que as vinculações orçamentárias previstas na Constituição podem ser reformuladas para uma regra melhor.