Divulgação / Instituto Oncoclínicas
As previsões para os números do câncer, no Brasil e no mundo, não são das melhores. Dados mais recentes da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC, da sigla em inglês), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), estimam 35 milhões de novos casos da doença em 2050, 77% a mais do que o número de 2022.
No Brasil, o órgão prevê um salto ainda maior, de 83,5%, levando o país a registrar 1,15 milhão de novos pacientes oncológicos daqui a pouco mais de duas décadas. Para o oncologista Carlos Gil, o crescimento vai além da melhora do diagnóstico e reflete hábitos de vida nocivos e a transição demográfica que leva o planeta a ter uma população cada vez mais envelhecida.
Em meio a esse cenário, ele, que é presidente de honra da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e presidente do Instituto Oncoclínicas, cita os três principais gargalos que o Brasil enfrenta hoje no controle do câncer, as perspectivas com as novas tecnologias em desenvolvimento e a importância de ampliar o acesso à prevenção, diagnóstico precoce e tratamento da doença na rede pública.
Quais são os principais gargalos hoje no controle e tratamento do câncer no Brasil?
O primeiro é que não temos uma política clara que favoreça a prevenção e o diagnóstico precoce. Temos políticas pontuais do Ministério da Saúde para determinados tipos de câncer, como o de mama, mas não temos programas para diagnosticar cedo câncer colorretal, com colonoscopias de rotina, não temos programa de rastreamento do câncer de pulmão. E isso é o que os países desenvolvidos vêm fazendo. A única ação que fizemos de forma bem sucedida nesse sentido foi o programa de cessação do tabagismo para prevenção.
O segundo gargalo é o acesso a tratamentos mais modernos disponíveis hoje, que têm um impacto na sobrevida e na qualidade de vida. Cirurgias minimamente invasivas, por vídeo, robóticas, fazem muita diferença para tumores como os da pelve, casos do de reto, próstata, ginecológico. Mas no setor público, temos pouquíssimas instituições com robôs operantes e profissionais treinados. Na rede privada, temos mais infraestrutura, mas ainda podemos melhorar muito. O acesso à radioterapia também é um problema. Temos um número de aparelhos de última geração muito pequeno. Existe um programa do ministério para ampliar esse número, mas está atrasado.
Por fim, o terceiro gargalo é o baixo investimento em pesquisa clínica pelo setor público para atender a demandas do controle do câncer no país, que é muito limitado há décadas. Para o Brasil avançar, com capacidade de desenvolver novas tecnologias nacionais e a custo mais baixo e acessível, é preciso financiamento.
E o acesso à medicação?
Em relação aos medicamentos, para alguns tipos de câncer, as terapias-alvo, drogas que agem numa mutação específica do tumor, têm conseguido controlar ou até reverter o câncer. Mas mesmo no âmbito privado o acesso é limitado, o problema começa já no pouco acesso à análise genômica daquele tumor, necessária para o uso de um remédio do tipo. Outros remédios que vêm fazendo diferença são da imunoterapia, que é praticamente inexistente no sistema público brasileiro. A Conitec recentemente negou a incorporação de alguns imunoterápicos para câncer de pulmão, por exemplo, no SUS. E no âmbito privado não há boa vontade dos planos de saúde de arcar com essas despesas.
Há uma política nacional de prevenção e diagnóstico sendo elaborada?
Tivemos um avanço no fim do ano passado que foi a aprovação de um projeto de lei que prevê que o Ministério da Saúde desenvolva uma política nacional de controle de câncer. A lei ainda não foi regulamentada, mas dentre as ações previstas está a criação de programas de prevenção e de diagnóstico precoce. A meu ver, é onde a verba deve ser prioritariamente investida hoje. Numa segunda etapa, a lei prevê um aumento do orçamento para oncologia dentro do ministério. Hoje, ele está na faixa de R$ 3 bilhões, que é algo ínfimo dentro de todo o montante da pasta. Precisaríamos pelo menos triplicá-lo se quisermos dar um acesso mínimo e decente aos pacientes do SUS.
O Pronon, que direciona doações para pesquisa e tratamento oncológico, é temporário e quase foi encerrado antes da última prorrogação. Seria importante termos políticas mais permanentes?
O Pronon é importante, foi criado há muitos anos, mas correu o risco de ser cancelado no governo anterior. Ele ajuda bastante, é um mecanismo de financiamento interessante, que, sim, gostaríamos que fosse perene. Mas ele é insuficiente para o que precisamos no país.
China e Coreia do Sul, por exemplo, investiram pesadamente na indústria farmacêutica nas últimas décadas para se tornarem autônomas na produção de medicamentos inovadores. Mas foi uma política de Estado, pensada a longo prazo. Nós não temos mecanismos do tipo no Brasil. Para desenvolver uma tecnologia nacional, por exemplo, é preciso um investimento de 5, 10, 15 anos. Como o nosso ambiente político é volátil, muitas vezes os governos mudam e cancelam programas do anterior, o que impossibilita a continuidade.
Previsões apontam para o aumento de casos de câncer. Por que isso deve acontecer?
Vamos viver um boom de casos de câncer em 2030, no mundo e no Brasil. Isso é resultado de vários fatores. Em primeiro lugar, a população está vivendo mais, então a chance de alterações genéticas decorrentes do envelhecimento aumenta. Alguns cânceres são característicos da terceira idade, como o de próstata.
Existe uma melhoria no diagnóstico, falando de países desenvolvidos, mas outro ponto mais importante por trás desse aumento são os fatores ambientais. Obesidade, sedentarismo, tabagismo, álcool, poluição ambiental são causas diretas de câncer. Então é um conjunto entre envelhecimento da população e uma exposição prolongada e aumentada a agentes ambientais com potencial cancerígeno.
Mas o cenário hoje de tratamento também não tem nem comparação com 10 anos atrás. Temos pacientes que já vivem o triplo, o quíntuplo do que viviam antes e com ótima qualidade de vida. O que nos deixa como profissionais muito preocupados é que essa é a realidade da medicina privada, enquanto no SUS até o diagnóstico é difícil.O cenário hoje de tratamento também não tem nem comparação com 10 anos atrás. Temos pacientes que já vivem o triplo, o quíntuplo do que viviam e com qualidade de vida — Carlos Gil, presidente do Instituto Oncoclínicas
A política de cessação do tabagismo teve bons resultados. Precisaríamos de algo semelhante com, por exemplo, ultraprocessados?
Sem dúvidas. Países escandinavos fazem campanhas de educação começando nas escolas em relação aos alimentos ultraprocessados. Temos que aumentar isso no Brasil. A relação com o câncer colorretal é direta, hoje já não existe dúvida. Existem alertas nos rótulos dos alimentos, mas é preciso uma campanha maior de conscientização, semelhante à feita para o tabagismo, que chegou ao extremo das fotos nas embalagens, mas que sabemos que é eficaz. Óbvio que existe um grande embate com a indústria alimentícia, mas o governo precisa encabeçar isso.
Como vê o progresso científico nessa área? Seremos capazes de controlar e curar mais tipos de câncer?
Isso vai mudar muito ainda na próxima década. Essas novas tecnologias, às vezes olhamos para elas de forma isolada, mas vamos ter diferentes opções de tratamentos avançados para um mesmo tipo de câncer. Acredito que vamos ser capazes de, se não curar alguns tipos de câncer, torná-los doenças crônicas. O problema todo é que o custo é incrementado. Uma nova tecnologia muitas vezes não substitui a anterior, ela é acrescentada, e o valor também. Então é um desafio para o sistema de saúde conseguir bancar. A solução para isso é, por um lado, conseguirmos aumentar o diagnóstico precoce, que favorece a chance de cura com menos tratamentos, e, por outro, focar em desenvolver tecnologias mais baratas.
O que deveríamos estar fazendo para garantir o acesso a essas tecnologias com preços menores?
Recentemente, foi anunciada uma parceria entre a Fiocruz e o Inca para desenvolvimento de novas terapias, principalmente o CAR-T Cell, que é um tipo de imunoterapia mais avançada. Ainda vai levar alguns anos para chegar na prática, mas é algo interessante, deveríamos ter várias dessas iniciativas. Temos uma academia muito forte, com muita experiência, mas isso demanda financiamento. O custo por paciente hoje do CAR-T Cell no Brasil, por exemplo, é em torno de R$ 2 milhões, e não temos ainda no sistema público, exceto em alguns estudos. Mesmo no setor privado, muitos planos de saúde têm negado o acesso. Mas isso é uma questão global, que tem motivado uma discussão mais aberta sobre o aumento exponencial nos custos dos medicamentos com a indústria farmacêutica, para entender se é justificável ou não. A indústria investe muito dinheiro no desenvolvimento de novas tecnologias, o que é ótimo, mas será que esse preço é o caminho?
O Globo