Mais de duas semanas após a declaração de estado de calamidade, Porto Alegre está em busca de soluções para um problema inesperado decorrente do maior desastre de sua história: o gerenciamento do recebimento, armazenamento e distribuição de uma enxurrada de ajuda humanitária vinda de todo o mundo.
Os destinatários são os mais de 157 mil afetados pela grande enchente, que representam uma parcela significativa dos 1,3 milhões de habitantes da capital. Na sexta-feira (17), 13.594 desses indivíduos estavam alojados em abrigos municipais. Segundo informações da Folha de S. Paulo e da BBC News Brasil, a prefeitura não possui um levantamento do volume de doações recebidas, mas estima-se que esteja na casa das centenas de milhares de toneladas desde o início do mês.
Para as autoridades, o desafio não é apenas receber e distribuir a valiosa ajuda internacional. Em uma metrópole ainda parcialmente sem energia e com vias bloqueadas, é necessário escoltar veículos de carga, garantir a trafegabilidade das vias (incluindo a demolição de uma passarela na entrada da cidade para permitir a passagem de caminhões), estabelecer centros de armazenamento e logística do zero e fornecer pessoal para os serviços.
No governo municipal, ninguém admite oficialmente a dificuldade de gerenciar e acomodar as doações. O assunto é delicado, especialmente após o governador Eduardo Leite (PSDB) associar a chegada de mantimentos de todo o país a dificuldades para o comércio local, tendo que se retratar devido à repercussão negativa.
No pedido de desculpas, Leite admitiu que acabou “misturando [o impacto da enchente no comércio] com a questão das doações”. Sob condição de anonimato, membros da administração municipal e servidores ouvidos pela BBC News Brasil deixam claro que falta espaço e pessoal até mesmo para descarregar mantimentos.
As autoridades foram surpreendidas pela quantidade abundante de doações já nas primeiras horas da enchente. Como sinal da comoção causada pelo desastre, Porto Alegre tornou-se destino de remessas de alimentos, roupas para adultos e crianças (em alguns casos, necessitando de limpeza ou conserto), fraldas infantis e geriátricas, cobertores, travesseiros, fardos de água mineral e refrigerante, ração para animais de estimação, medicamentos, produtos de higiene e limpeza, utensílios de cozinha. A grande maioria das remessas ocorreu de forma espontânea.
Contas bancárias criadas pelo governo municipal para receber doações em dinheiro arrecadaram milhões via Pix e transferências bancárias. As moedas de origem eram tão diversas quanto real, euro, dólar americano e australiano. Com a abundância de itens recebidos, a prefeitura pretendia usar as doações em dinheiro para a aquisição de bens duráveis para aqueles que perderam tudo.
A chegada de doações não cessou mesmo nos momentos mais críticos. Na manhã de 4 de maio, sábado, havia sete pontos de coleta listados no site da prefeitura. Naquele momento, a Defesa Civil Municipal ainda estava triando os itens.
No final da tarde, o recebimento já tinha sido restringido e concentrado em um único local aberto 24 horas por dia. Quando a enchente completou uma semana, em 9 de maio (quinta-feira), o ponto de referência para doações tinha mudado outras duas vezes de endereço. Naquele momento, havia coleta e distribuição de itens de ajuda em 15 locais cadastrados em toda a cidade.
Uma semana depois, a prefeitura instalou uma Central de Logística no Porto Seco, na zona norte. No local, são realizados os desfiles de escolas de samba no Carnaval. A central ocupa um pavilhão de 1.100 metros quadrados normalmente utilizado como barracão de carros alegóricos das agremiações. O Porto Seco também foi designado para abrigar uma das quatro cidades provisórias que alojarão desabrigados no Estado.
A escolha do Porto Seco foi emergencial. O pavilhão não possui estrutura para armazenagem de carga. Nos próximos dias, uma empresa contratada pela prefeitura instalará prateleiras para pallets (molduras de madeira) capazes de aumentar a capacidade de estocagem do local.
“Recebemos basicamente cestas básicas, colchões, cobertores, roupa de cama, travesseiros e kits de limpeza que vêm da Defesa Civil do Estado”, afirma o secretário municipal de Governança, Cassio Trogildo, responsável pelo local.
Do Centro de Logística, as cargas são transportadas para os centros de distribuição (CDs) espalhados pela capital. Depois das dificuldades dos primeiros dias, a opção foi utilizar a estrutura administrativa das subprefeituras, que representam as 17 microrregiões da capital. Desse total, duas (Arquipélago e Humaitá) estão inundadas e fora de operação.
Uma terceira, a Microrregião Norte, apesar de alagada, teve áreas preservadas pelas águas que são utilizadas pelas autoridades. Atualmente, há CDs em todas as microrregiões, com exceção de Arquipélago e Humaitá.
Questionado se Porto Alegre enfrenta um gargalo no recebimento de doações, Trogildo explica que o esforço do governo é para que os emissários levem em conta, neste momento, as necessidades dos afetados. E quais são essas necessidades?
“Comida é sempre necessário. De preferência, cestas básicas, que fica melhor de fazer a distribuição, né? Claro que a gente não vai refugar quando vem…”, afirma. O Centro de Logística não dispõe de pessoal para realizar triagem de itens ou montagem de cestas básicas.
Parte das dificuldades enfrentadas pelo poder público local estão relacionadas à natureza multifatorial do desastre.
Além de água e lama, a cheia do Guaíba e de seus afluentes afogou a capital em números. A enchente atingiu desde o bairro Sarandi, na zona norte, onde 26.042 pessoas foram afetadas, até o Lami, no extremo sul, onde 4.398 pessoas foram impactadas, segundo a prefeitura. Um total de 39.422 edificações foram inundadas. O balanço inclui 45,9 mil empresas, 160 escolas municipais e 22 hospitais com atividades comprometidas em alguma medida.
O Aeroporto Internacional Salgado Filho e o cais do porto estão fora de operação por tempo indeterminado. O trecho final do principal acesso rodoviário à cidade, a via BR-290 e o Viaduto da Conceição, foi rebatizado como Caminho Humanitário: um trecho asfaltado sobre pedras erguido poucos metros acima do nível da água.
A passagem, idealizada para carga, foi liberada para veículos de passeio apenas na sexta-feira (17), e ainda assim de forma parcial.
Suprimento no final No início da crise, no dia 4 de maio, em meio ao pânico e quando até mesmo repartições essenciais na resposta à crise, como a Secretaria de Mobilidade Urbana, tiveram de ser evacuadas às pressas, o prefeito Sebastião Melo (MDB) negociou com o Exército o transporte aéreo emergencial, via Base Aérea de Canoas, de tubos de oxigênio para hospitais de Porto Alegre.
O suprimento dos estabelecimentos estava no final. “Você tem mil pontas neste momento para serem enfrentadas”, disse o prefeito em entrevista à CNN Brasil.
Diante do impasse, nos primeiros dias da enchente, foi preciso estabelecer um modus operandi entre prefeitura e governo do Estado na capital. Ficou decidido que o segundo, por meio da Defesa Civil do Estado, assumiria o recebimento e a triagem das doações em grande escala.
Os locais escolhidos como depósitos da central de ajuda humanitária foram os galpões da CEEE (Companhia Estadual de Energia Elétrica), no bairro Jardim do Salso. Desocupadas desde que a estatal foi privatizada, em 2021, as instalações têm a vantagem de estar distantes 10 quilômetros da orla e em ponto elevado em relação ao Arroio Dilúvio, que corre nas proximidades. Além disso, ficam próximas do único acesso rodoviário à capital no início da catástrofe, pelo leste.
À prefeitura, coube o controle e monitoramento do trânsito, incluindo a escolta de cargas de ajuda, o transporte da população afetada e a administração de abrigos.
O recrutamento online de voluntários também superou expectativas. A prefeitura chegou a anunciar no dia 5 de maio que o cadastro oficial havia recebido 15 mil inscrições e que novos voluntários não seriam aceitos.
“Agora, nossa prioridade é distribuir os itens recebidos para quem mais precisa. Se necessário, voltaremos a pedir novas contribuições”, conclui o secretário municipal de Gestão e Modernização de Projetos, Rogério Beidacki.