(Edilson Rodrigues/Agência Senado)
Enquanto suas informações ajudam a desnudar a tentativa de golpe militar e comprometem Bolsonaro, o tenente-coronel detona o ministro e a instituição
Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, já prestou seis depoimentos à Polícia Federal depois de assinar um acordo de colaboração premiada. Em troca de benefícios, comprometeu-se a dizer a verdade. As revelações feitas pelo tenente-coronel, que compartilhou da intimidade do ex-presidente durante os quatro anos de governo, foram fundamentais para a elucidação da trama golpista urdida pelo seu antigo chefe, um grupo de assessores e militares de alta patente. Graças às informações prestadas por Cid, sabe-se hoje que a democracia esteve ameaçada após as eleições de 2022. Sabem-se os detalhes dos planos mirabolantes que foram traçados para não permitir que Lulasubisse a rampa do Palácio do Planalto. Sabe-se que entre as sandices articuladas estava a detenção de adversários políticos e juízes. As informações de Mauro Cid deixaram Bolsonaro numa situação jurídica extremamente delicada, a ponto de seus próprios apoiadores não descartarem a possibilidade de uma prisão iminente. Deve-se ao tenente-coronel, portanto, muito do que se descobriu e muito do que ainda pode emergir da tentativa de golpe.
Nos bastidores, no entanto, quando os policiais saem e ele volta para seu círculo mais íntimo, existe um outro Mauro Cid. Depois de relatar que o ex-presidente discutiu planos golpistas com os comandantes militares no Palácio da Alvorada e que um deles chegou a colocar as tropas à disposição para executar a missão, Mauro Cid tem dito a pessoas próximas que suas declarações foram distorcidas, certas informações tiradas de contexto e outras convenientemente omitidas pela Polícia Federal. VEJA teve acesso à gravação de uma dessas conversas (ouça abaixo). Nela, o ex-ajudante de ordens dispara petardos contra os agentes e contra a investigação. Cid diz, por exemplo, que a polícia o pressionou a relatar fatos que simplesmente não aconteceram e detalhar eventos sobre os quais não tinha conhecimento. O tenente-coronel afirmou que policiais o induziram a corroborar declarações de testemunhas e apontou um delegado que o teria constrangido a reproduzir informações específicas, sob pena de perder os benefícios do acordo. “Eles (os policiais) queriam que eu falasse coisa que eu não sei, que não aconteceu”, contou. “Você pode falar o que quiser. Eles não aceitavam e discutiam. E discutiam que a minha versão não era a verdadeira, que não podia ter sido assim, que eu estava mentindo”, completou.
“O Alexandre de Moraes é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele quiser. Com Ministério Público, sem Ministério Público, com acusação, sem acusação.”
A gravação foi realizada na semana passada, depois que Mauro Cid prestou depoimento à PF, na segunda-feira 11. Na condição de colaborador e obrigado a falar a verdade, ele foi ouvido por nove horas seguidas. Depois, em uma conversa com um amigo, desabafou por quase uma hora. “Eles estão com a narrativa pronta. Eles não queriam saber a verdade, eles queriam só que eu confirmasse a narrativa deles. Entendeu? É isso que eles queriam. E todas as vezes eles falavam: ‘Ó, mas a sua colaboração. Ó, a sua colaboração está muito boa’. Ele (o delegado) até falou: ‘Vacina, por exemplo, você vai ser indiciado por nove negócios de vacina, nove tentativas de falsificação de vacina. Vai ser indiciado por associação criminosa e mais um termo lá’. Ele falou assim: ‘Só essa brincadeira são trinta anos para você’.” Cid disse que os delegados encarregados do caso só registravam as informações que se encaixavam naquilo que ele chama de “narrativa”. “Eu vou dizer o que eu senti: já estão com a narrativa pronta deles, é só fechar, e eles querem o máximo possível de gente para confirmar a narrativa deles. É isso que eles querem”, ressaltou.
Na conversa, o ex-ajudante de ordens também faz críticas pesadas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos que apuram a tentativa de golpe, a venda de joias do acervo presidencial e a falsificação de registros de vacina, casos que têm Jair Bolsonaro como investigado. O objetivo de tudo, segundo ele, seria pegar o ex-presidente. “O Alexandre de Moraes é a lei. Ele prende, ele solta, quando ele quiser, como ele quiser. Com Ministério Público, sem Ministério Público, com acusação, sem acusação”, afirmou o tenente-coronel. Para mostrar ao interlocutor que haveria uma filtragem das informações que são oficializadas pela PF, Cid fala de um suposto encontro entre o ministro e Jair Bolsonaro, que não ficou registrado nos seus depoimentos. “Eu falei daquele encontro do Alexandre de Moraes com o presidente, eles ficaram desconcertados, desconcertados. Eu falei: ‘Quer que eu fale?’.”
“Eles (Polícia Federal) estão com a narrativa pronta. Eles não queriam saber a verdade, eles queriam que eu confirmasse a narrativa deles.”
Na tentativa de se defender junto ao interlocutor, o ex-ajudante de ordens ainda faz uma série de considerações sobre a condução dos processos. “O Alexandre de Moraes já tem a sentença dele pronta, acho que essa é que é a grande verdade. Ele já tem a sentença dele pronta. Só tá esperando passar um tempo. O momento que ele achar conveniente, denuncia todo mundo, o PGR acata, aceita e ele prende todo mundo.” Ouvindo a conversa, a impressão que se tem é que há dois Cids diferentes na mesma pessoa — o colaborador, cujas informações têm sido fundamentais para desnudar a tentativa de golpe, e o injustiçado, cujas palavras estão sendo modificadas por policiais enviesados. Um deles, evidentemente, não diz a verdade.
Em setembro do ano passado, depois de passar 129 dias preso, o ex-ajudante de ordens assinou um acordo de colaboração premiada com a Justiça. Ele se comprometeu a contar o que sabia e, em troca, no final dos processos, caso seja condenado, vai cumprir uma pena de, no máximo, dois anos de prisão. Em seus depoimentos, Cid descreveu pormenores de reuniões no Palácio da Alvorada, em que Bolsonaro pressionou militares de alta patente a aderir a um golpe de Estado, listou personagens — entre assessores, políticos e integrantes das Forças Armadas — que atuaram para anular as eleições presidenciais e explicou como figuras hostis ao capitão eram desqualificadas e transformadas em alvos a serem abatidos. A partir de tudo o que relatou, autoridades que orbitavam Bolsonaro, incluindo o próprio ex-presidente, sofreram buscas ou prisões no âmbito dos inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes. As informações prestadas por Cid são, sem dúvida, a coluna vertebral da investigação sobre o golpe — e mostraram-se verdadeiras.
Confrontados, os então comandantes do Exército, general Freire Gomes, e da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Junior, confirmaram as reuniões em que foram discutidos com o então presidente esboços de decretos que, entre outras medidas, previam a instituição do estado de defesa e do estado de sítio, instrumentos típicos de regimes de exceção que autorizam que prisões sejam feitas sem ordem judicial. Os dois oficiais também confirmaram que o almirante Almir Garnier, à época comandante da Marinha, ao contrário deles, colocou as tropas à disposição de Bolsonaro — informação importantíssima que chegou ao conhecimento das autoridades por meio de Cid, que também revelou que a empreitada golpista só não foi adiante porque o Alto-Comando do Exército não apoiou. As declarações do Cid colaborador, que não pode mentir, estão documentadas e, na última segunda-feira, 18, inclusive resultaram no indiciamento de Bolsonaro e mais dezesseis pessoas no inquérito que apura a falsificação de certificados de vacina.
“Você pode falar o que quiser. Eles (os policiais) não aceitavam e discutiam. E discutiam que a minha versão não era a verdadeira, que não podia ter sido assim, que eu estava mentindo.”
Longe dos depoimentos, porém, o comportamento de Cid tem sido muito diferente. Aos amigos, ele procura desmentir até informações que estão assinadas por ele nos encontros com os investigadores. De acordo com sua fala na PF, pouco antes de deixar o governo, em dezembro de 2022, Bolsonaro teria solicitado a Cid um documento atestando que ele e sua filha haviam sido vacinados contra a Covid-19. O tenente-coronel, em sua colaboração, confirmou ter recebido a ordem do ex-presidente para produzir a falsificação — detalhe fundamental para que o ex-chefe fosse indiciado no caso. Nas conversas com os amigos, no entanto, Cid garante que nunca ouviu tal determinação. Também afirma que nunca falou em golpe de Estado ou na existência de uma minuta que sugerisse algo ilegal. Garnier, nessa versão adocicada, seria apenas um bravateiro.
“Eu vou dizer o que eu senti: já estão com a narrativa pronta deles, é só fechar, e eles querem o máximo possível de gente para confirmar a narrativa deles. É isso que eles querem.”
Na cultura militar, o delator é considerado um traidor, um pária, alguém que não merece a farda que veste. Isso talvez explique essa postura esquizofrênica de Cid. O medo também pode ter influenciado esse jogo duplo do ex-ajudante de ordens. Desde que assumiu o papel de colaborador, ele sofre ameaças pelas redes sociais e teme ser alvo de algum atentado. Na conversa com o interlocutor, ele fala sobre sua situação: “Quem mais se f. fui eu. Quem mais perdeu coisa fui eu. O único que teve pai, filha, esposa envolvido, o único que perdeu a carreira, o único que perdeu a vida financeira fui eu”. E também deixa escapar a mágoa: “Ninguém perdeu carreira, ninguém perdeu vida financeira como eu perdi. Todo mundo já era quatro estrelas, já tinha atingido o topo, né? O presidente teve Pix de milhões, ficou milionário, né?”.
Para ter direito aos benefícios do acordo, a colaboração do ex-ajudante de ordens precisa de efetividade — o que ela já demonstrou. O prêmio será definido pelo ministro Alexandre Moraes, mas só no final do processo. Na gravação, Cid explica por que decidiu colaborar com a polícia: “Se eu não colaborar, vou pegar trinta, quarenta anos. Porque eu estou em vacina, eu estou em joia…”. E faz uma previsão: “Vai entrar todo mundo em tudo. Vai somar as penas lá, vai dar mais de 100 anos para todo mundo. Entendeu?”. O interlocutor parece concordar. O tenente-coronel então conclui: “A cama está toda armada. E vou dizer: os bagrinhos estão pegando dezessete anos. Teoricamente, os mais altos vão pegar quantos?”. A pergunta não é difícil de ser respondida. O Cid colaborador pode até escapar da prisão. Já o Cid que emerge da conversa com o amigo certamente terá enormes problemas pela frente.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885