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“Me chamo Lucélia Rodrigues, acho que muitos me conhecem como a garotinha que passou pelo cativeiro mas, antes disso, eu tive uma história. Nasci em primeiro de novembro de 1995. Passei uma infância feliz, em um bairro simples da região metropolitana de Goiânia. Quando tinha 7 anos, meus pais se separaram e as coisas começaram a se complicar na minha vida.
Acho que uma criança nunca espera a separação dos pais. Um dia estávamos todos juntos e no outro me deram a notícia. Como meu pai se mudou para uma casa perto, eu me dividia entre os dois.
Até que minha mãe se mudou de bairro. Ela foi para longe e tive que escolher com quem iria morar. Me lembro que respondia querer ficar com os dois. Queria meus pais casados, mas naquela época uma criança não tinha voz. Então, a decisão foi tomada por mim e fui morar com meu pai, pois ele tinha um emprego na época.
Quando tinha 10 anos, voltei a morar com a minha mãe. Mas era um barracão de dois cômodos bem apertadinhos, além de passarmos por muita dificuldade financeira. Foi nessa época que minha tia nos apresentou para a empresária Sílvia Calabresi Lima, que começou a me torturar. Ela lentamente foi entrando em nossa intimidade, minha mãe me deixava passar uma semana lá e eu era muito bem tratada no começo.
Quando chegava na casa, ela me levava para comprar roupas novas, no salão para arrumar meu cabelo e unhas, me matriculou em uma escola particular de Goiânia. Quando pediu para cuidar de mim para minha mãe, ela autorizou, achando que eu teria um futuro melhor. Morei lá dos 10 aos 12 anos e me lembro perfeitamente que os primeiros seis meses foram muito bons.
Fui realmente bem tratada, acolhida, amada, tratada como filha. Mas, passado os seis meses iniciais, aquela mulher começou a se transformar em uma pessoa que eu não conhecia e a fazer coisas comigo que não eram normais.
O cativeiro
Os castigos começaram por qualquer coisa. As pessoas me perguntavam o que eu fazia para ser punida, mas sempre digo que nada justifica a violência. Corrigir com amor é uma coisa, agora com violência e tortura, como aquela mulher fazia, não é normal.
As agressões aumentavam a cada dia que passava e chegou ao ponto dela me manter no cativeiro. A gente morava no condomínio de luxo em Goiânia e nos mudamos para uma cobertura localizada em um setor nobre. Posso dizer que vivi os piores dias da minha vida lá, em que achava que morreria a qualquer momento.
Os abusos
Foram anos de tortura e eu posso citar algumas. Lembro que tinha um tanque de lavar roupa que ela enchia de água e amarrava minhas mãos para trás e enfiava a minha cabeça lá. Quando ela via que eu estava quase perdendo o ar, me deixava respirar e fazia tudo de novo.
Ela esmagava a ponta dos meus dedos na porta e tinham marcas de sangue nas dobradiças quando os policiais me encontraram. Até hoje, tenho um dedo menor que o outro por causa disso. Perdi a conta de quantas vezes minhas unhas caíram.
Uma vez ela me enforcou com uma corda e me deus 70 pauladas na cabeça, 60 na nuca e sete no estômago. Eu me lembro, porque ela me fez contar cada uma delas. Ela pegava o sumo da pimenta e esfregava nos meus olhos e nariz, meu rosto ardia tanto que parecia estar pegando fogo.
Uma coisa que me marcou muito foi quando pegou um alicate de eletricista e cortou um pedaço da minha língua. Tenho marcas até hoje de cortes, facadas, machucados.
O resgate
No dia 15 de março de 2008, lembro que ela me acorrentou nas escadas, como de costume. Ela me colocava com as mãos para cima e amordaçada com um pano cheio de pimenta enfiado na minha boca.
Ela fez isso umas oito da manhã e foi trabalhar. Dormi pendurada naquela posição e, quando acordei, consegui ver no relógio de dentro da cozinha que eram 10h22. Me lembro de olhar para o céu e orar para Deus com toda a fé tinha no meu coração.
Clamei para o Senhor, mesmo amordaçada. O questionei do porquê estava passando por isso, se não era melhor eu só morrer. Senti que estava adormecendo de novo, quando deu 10h25 e escutei a voz de uma mulher me chamando na porta.
Eu não conhecia aquela voz e ela não parava de me chamar e bater. Eu achei que estava morta e não conseguia me mexer. Escutei a porta se abrindo e a mulher veio correndo me salvar. Quando ela me viu, começou a gritar: ‘Meu Deus, tem uma menina presa aqui’.
Foi feita uma denúncia anônima e a Polícia Civil foi até o local me resgatar. A mulher era, na verdade, uma das policiais que salvou minha vida. Mas quando ela tirou a mordaça, minha primeira reação foi mandar eles embora.
A mulher me ameaçava dizendo que se eu a denunciasse, ela iria me matar e matar toda minha família e isso entrou no meu coração. Fui tomada pelo medo e hoje sempre digo nas palestras que dou para a gente não permitir o medo entrar no nosso coração, porque ele pode nos levar à morte.
Mas foi nesse dia que meu inferno acabou. Eu chorava muito, olhava para o céu e agradecia a Deus, porque ele escutou meu grito de socorro e mandou aquelas pessoas ao meu encontro.
Senti um amor muito grande no abraço da policial que me salvou, principalmente quando ela disse que me amava. Nunca vi aquela mulher, nem sei o nome dela, mas entendo perfeitamente que era o próprio Deus falando na boca dela e dizendo para mim que me amava e que nunca me abandonou.
Silvia foi presa e condenada a quase 15 anos de prisão. Em 2014, a Justiça concedeu o benefício de progressão de pena e ela foi transferida para o regime semiaberto.
O recomeço
Depois que dei meu depoimento na delegacia e a empresária foi presa, falo que Deus deu um final para meu sofrimento no dia 15 de março de 2008. Meus pais perderam minha guarda e fui colocada na adoção, fiquei no abrigo por nove meses.
E ali, naquele abrigo, crianças entravam e saiam diariamente enquanto eu estava lá aguardando por uma família, até um casal de pastores, Zenet Rodrigues e Marcos Rodrigues, me adotar e me levar para Belo Horizonte com eles.
Comecei a chamá-los de pai e mãe, porque eles salvaram minha vida e me deram um propósito de volta. Hoje tenho a família que sempre sonhei.
Sou casada com o amor da minha vida e tenho três filhos: Miguel, Mateus e Marcos. Também sou missionária e viajo pelo Brasil inteiro contando a minha história de superação e de milagre em palestras.”
Créditos: Marie Claire.